BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
Antonio José é um dos músicos e compositores que suscitaram dúvidas quanto à sua identificação, origens, vida e obra em estudos conduzidos desde a década de 1960 em São Paulo. O seu nome era lembrado por músicos de mais idade, em particular daqueles provenientes ou relacionados com o vale do Paraíba, entre eles Andrelino Vieira, Edgard Arantes, Benedito Moreira, ou Estefânia Gomes de Araújo, filha de João Gomes de Araújo (1846-1943). Essas dúvidas resultavam do fato de ser lembrado apenas como Antonio José, sem o seu sobrenome, o que dava margens a conjecturas sob as suas origens, se proveniente de Minas Gerais ou mesmo de Portugal.
Essas questões marcaram os estudos conduzidos no Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão. O interesse por Antonio José foi intensificado a partir de estudos de tradições realizadas em cidades do vale do Paraíba conjuntamente com pesquisadores de folclore a partir de 1966. A Semana Santa em cidades como Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Taubaté, São Luís do Paraitinga e Cunha foi objeto de estudos no sentido de compará-la com a Semana Santa conhecida em São Paulo, vivenciada na tradição da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos e que suscitara o desenvolvimento dos estudos do projeto Musicologia Paulista do Centro de Pesquisas em Musicologia.
As expressões e tradições da Semana Santa foram reconhecidas como sendo de especial relevância para os estudos músico-culturais. Na dramaticidade das ações litúrgicas e paralitúrgicas, sobretudo nas procissões, em particular naquelas do Enterro, transmitiram-se através dos séculos formas de expressão e representação do mais alto significado para estudos de encenações e imagologia nas suas relações com visões do mundo e do homem. A Semana Santa. marcada por rememorações de decorrências últimas da vida de Cristo na terra, determina também o peso dado à tradição, às imagens históricas, às obras musicais consuetudinárias, à permanência de antigas praticas do cantochão e de um estilo antigo em motetos de procissão. Essas obras tradicionais desempenham papel relevante na auto-consciência de comunidades. Elas contribuem de forma relevante à caracterização de paróquias, irmandades e cidades. Assim como as históricas imagens levadas em procissão, também cantos da Semana Santa transmitidos anônimamente, ainda que em diversas fases do processo que a a torna expressão tradicional, possui a sua história. A introdução de repertórios, a difusão de obras em contextos regionais e suas adaptações e aceitações coletivas são alguns dos aspectos que constituem objeto de estudos de uma pesquisa dirigida a processos.
O interesse por Antonio José foi intensificado com a constatação do significado da sua obra para o Sábado da Semana Santa na tradição regional, em particular em Guaratinguetá, tendo-se mantido na memória pelo seu extraordinário brilho, justificando a ida de músicos e devotos a Guaratinguetá para vivenciar a empolgante obra, com grande coro e orquestra. O descobrimento das partes dessa obra possibilitou análises que explicavam e fundamentavam essa tradição oral.
A questão que primeiramente se levantou foi a da razão teológica dessa expressão de júbilo da obra no contexto da Semana Santa, a última semana do período quaresmal, uma semana de dor, de lamentações e de silêncio. Essa questão foi tratada no âmbito do grupo de estudos do Gregoriano e da música sacra em geral do Centro de Pesquisas em Musicologia formado em 1968 em São Paulo, dirigido pela gregorianista Eleanor Dewey em cooperação com teólogos e pesquisadores da Faculdade Sedes Sapientiae, do Studium Theologicum de Curitiba, do Instituto Pio X e de outras instituições.
O Sábado da Semana Santa, seguindo-se à morte na cruz e antecedendo o domingo da ressurreição, é um dos dias do Triduum pascoal, marcando o término da época de jejuns. Rememora o sepultado, a descida de Cristo aos infernos, onde libera as almas dos justos (1 Petr 3,19). É um dia que, em princípio, seria marcado pela tristeza, pelo lamento, pelo luto e silêncio. Nesse sentido e em princípio, nele não se celebra missas, se comunga ou se recebe sacramentos que deem motivo para alegria festiva. Não é propriamente o sábado de Páscoa, que é aquele da oitava que segue ao Domingo da Ressurreição, ou seja o sábado seguinte.
O problema que se coloca à pesquisa musicológica resulta do fato de que o Sábado Santo de Antonio José, assim como outras obras designadas como Sábado Santo apresentam características que não correspondem a esse sentido do sábado como último dia da Quaresma, mas sim ao uso generalizado da sua designação como sábado da Páscoa. São as Vigílias na noite e/ou madrugada do domingo, com os atos rituais da luz, as horas nas quais decorre a preparação à ressurreição e que justifica o júbilo.
Partes da obra de Antonio José trazem a indicação a lápis de ter sido executada na manhã do sábado. Trata-se assim da antecipação de celebrações marcadas pela expectativa da Ressurreição das Matinas ou Vigílias permitida pela autoridade eclesiástica, uma antecipação que coloca dificuldades para a compreensão de sentidos, uma vez que as Horas que justificam a alegria passam a ser celebradas no decorrer do sábado ou mesmo na manhã do mesmo. Os compositores denominam assim obras para o sábado da Semana Santa como Sábado Santo, mas os seus sentidos devem ser considerados a partir daqueles da Vigílias da noite que precedem o domingo de Páscoa. Esses deslocamentos de concepções do dia devem ser levados em conta para o entendimento do teor de obras como aquela de Antonio José.
Os estudos do Sábado Santo em cidades do vale do Paraíba tiveram prosseguimento no Centro de Estudos Histórico-Musicais e do Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista criado na Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo em 1972. O Sábado Santo em São Paulo no passado foi estudado no curso Música na Evolução Urbana de São Paulo e trabalhos de pesquisas em cidades do Paraíba foram desenvolvidos por estudantes da área de Etnomusicologia sob o aspecto de uma Etnomusicologia Urbana. No âmbito de estudos de pós-graduação de História da Música, o Sábado Santo de Antonio José foi considerado em cotejo com outras obras do Sábado da Semana Santa de outros compositores.
As origens do compositor apenas conhecido por Antonio José, que surgiam como enigmáticas, puderam ser mais esclarecidas com publicação do livro Os Galvão de França, de Carlos Eugênio Marcondes de Moura em 1973. Nessa obra, menciona-se Antonio José Cardoso de Araújo Abranches (II, 1972, 481). Antonio José teria nascido ao redor de 1820 em Cunha e falecido ao redor de 1850 em Guaratinguetá, sendo casado com Mariana Silveira de Camargo. Segundo outros, teria sido batizado em Cunha em 1817 e falecido em Guaratinguetá em 1857, onde se casou com Mariana Silvéria Romeiro (ou Camargo), nascida em Guaratinguetá em 1801. As relações de parentesco levam ao médico e farmacêutico Luiz Antonio Camargo (ca. 1780-1850), a Maria Silvéria Romeiro (1801-?) de Guaratinguetá e a Francisco Lopes de Camargo, natural de Guarulhos.
Essas informações, com todas as incertezas que revelam a necessidade de pesquisas genealógicas mais pormenorizadas, são concordes em situar o compositor em contexto determinado por Cunha e Guaratinguetá, sugerindo uma tradição mais remota. Era filho de Frederico José Cardoso de Araújo Abranches, nascido ao redor de 1790 em São Paulo, casado com Francisca Eufrásia de Oliveira, nascida ao redor de 1790 em Guaratinguetá.
Antonio José foi personalidade de relevo em Guaratinguetá, tendo exercido cargos públicos. Os seus estreitos vínculos com a igreja revelam-se no fato de ter sido instituidor da capela das almas e do cemitério. Os seus méritos e a sua formação cultural podem explicar ter sido ele condecorado com a imperial Ordem da Rosa. Foi pai de Frederico José Cardoso de Araújo Abranches (1840-1903), nascido em Guaratinguetá, destacado advogado, escritor e político, um dos principais representantes do partido liberal. Vindo a São Paulo, ingressou na Faculdade de Direito em 1860, onde se formou em 1864. Foi presidente das província do Paraná (1873-1875) e do Maranhão (1875-1876), assim como senador por São Paulo na primeira legislatura da época republicana (1891-1892). Nesse contexto, poder-se-ia partir da suposição que Frederico José Cardoso de Araújo Abranches teria vivenciado em Guaratinguetá uma intensa vida musical. A consideração de Antonio José teria assim significado relevante para estudos da vida musical da própria cidade de São Paulo.
A configuração musical do Sábado Santo de Antonio José foi objeto de análises de sentidos em estudos de música sacra no século XIX em meios voltados à pesquisa da música sacra no Brasil e na Europa, Quase que programaticamente, a composição manifesta a alegria da Ressurreição. Em 3/4, a alegria quase que dançante é intensificada por condução melódica extraordinariamente movimentada, com profusão de notas repetidas e figurações escalares ascendentes e descendentes. Em particular o Alleluia, com as muitas repetições do termo, exprime de modo impressionante o júbilo da manhã do domingo de Páscoa.
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
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