BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
Em época marcada pelas rememorações do bicentenário de Dom Pedro II (1825-1891), torna-se oportuno considerar estudos músico-culturais do século XIX referentes a relações entre a Europa e o Brasil que vem sendo realizados já há mais de meio século. Um dos focos desses estudos tem sido as primeiras décadas do século XIX pelo seu significado para a consideração das décadas que se seguiram.
Com a vinda da família real de Portugal em 1808 para o Brasil, desencadearam-se processos que marcaram os desenvolvimentos políticos, intelectuais e culturais posteriores, também aqueles referentes à música. A música pode ser um princípio condutor dos estudos desses processos pelo seu significado extraordinário na vida cultural, social e religiosa.. O papel sócio-psicológico desempenhado pela música na movimentação de afetos e emoções não pode deixar de ser considerado nos estudos culturais. Esta constatação dos efeitos da música, de remotas origens e lembrado por teóricos no decorrer dos séculos, justifica também que se parta da música como princípio condutor de estudos de processos culturais. Essa orientação tem determinado tanto estudos musicológicos como aqueles voltados para análises de processos culturais.
Músicos que ocupavam posições de destaque na vida musical em Portugal transferiram-se para o Brasil. Entre eles, salientou-se Marcos António da Fonseca Portugal (1762-1830), compositor de projeção européia que passou a ocupar posições de relêvo e de liderança, que viveu e permaneceu no Brasil quando a Corte retornou a Portugal em 1821. O Brasil abrigou e tornou-se pátria de adoção de um dos mais importantes compositores portugueses e mesmo europeus de fins do século XVIII e primeiras décadas do XIX. Foi mestre de música de príncipes e princesas reais, compositor de obras para as principais datas, mestre e compositor da Capela Real.
O Brasil foi visitado por Sigismund Neukomm (1778-1858), compositor austríaco da mais sólida formação, principal discípulo de Michael Haydn (1737-1806), inserido em círculos influentes da política e da diplomacia da Restauração européia, autor do Te Deum para Luís XVIII (1755-1824), e que atuou como diplomata e músico no Brasil. A lembrança de sua presença e a sua atuação no Brasil traz à consciência a inserção dos processos políticos e político-culturais em contextos transcontinentais, de suas relações e interações com decorrências na Europa.
Não se pode porém esquecer que nem todos os músicos portugueses vieram com a família real no rol dos numerosos aristocratas, funcionários e acompanhantes que a acompanhou ao Brasil. A partida da Corte foi amarga para a vida social, cultural e musical do país ameaçado pelas tropas de Bonaparte. Não se pode deixar de considerar o estado de espírito e emocional causado por partidas, a sensação de abandono e o ressentimento daqueles que ficam, o que se evidenciou posteriormente na exigência do retorno da família real.
Essas reflexões e tentativas de empatia para a situação daqueles que ficaram marcaram os estudos do compositor João José Baldi que, diferentemente de Marcos Antonio Portugal, não saiu do país, não o abandonou, não seguiu a Corte. O fato de ter permanecido em Portugal e não ter estado ou vivido no Brasil não significa porém que foi desconhecido ou que suas obras não tivessem sido executadas. Nessas conjecturas, surgiu como uma trágica coincidência que João José Baldi tenha justamente falecido em ano que marcou o início do reinado de Dom João VI (1767-1826) após a morte da rainha, e assim a época do Reino Unido Portugal-Brasil e Algarves.
Os estudos de vida, obra e trajetória de João José Baldi foram conduzidos em cooperações com a musicóloga portuguesa Maria Augusta Alves Barbosa (1912-2012) e contou em especial com a colaboração de Robert Stevenson (1916-2012). João José Baldi foi um dos músicos de ascendência italiana da história da música em Portugal, filhos de músicos que, através da música, subiram socialmente e alcançaram renome. Neste sentido, a sua vida e formação apresenta similaridades com aquela de outros músicos portugueses. Na procura de um melhor conhecimento de suas origens familiares, a atenção tem sido dirigida a seu pai, Carlo Baldi. Indaga-se se este fora o artista conhecido na História das Artes por obras que revelam a sua proximidade com círculos altos de Nápoles, das Duas Sicílias e da Espanha. Conhece-se a sua representação do palácio real de Nápoles e uma gravura celebrativa do nascimento da princesa Maria Isabel Ana de Nápoles e Sicília (1743-1749), cujos pais seriam posteriormente reis da Espanha. Essas conjecturas, porém, ainda não puderam ser bem fundamentadas.
João José Baldi perdeu o seu pai quando tinha 9 anos. Similarmente a outros meninos em situação familiar difícil, foi admitido cedo, com 11 anos, em 1781, no Seminário da Patriarcal. Nele obteve uma formação musical com professores de renome como João de Sousa Carvalho (1745-1798), José Joaquim dos Santos (1747-1801) e os Jerónimo Francisco de Lima (1743-1822). Ali estudou até 1789. O jovem Baldi já estava no término de sua formação em condições de escrever obras de envergadura como as duas missas com orquestra que se encontram conservadas na Sé de Lisboa. Assim formado, foi nomeado mestre de capela da Guarda, onde permaneceu cinco anos. Em 1798, passou para a Sé de Faro, onde atuou dois anos, retornando em 1800 a Lisboa. Tornou-se segundo mestre da Real Capela da Bemposta, onde o órgão e a música vocal com acompanhamento de órgão marcavam a prática sacro-musical, e cujo primeiro mestre da capela era o organista e compositor Luciano Xavier dos Santos (1734-1808). Do início do século tem-se menção de que também se dedicou à música mais ligeira, compondo modinhas que publicou em 1801.
O seu maior interesse sempre foi porém o da música sacra com acompanhamento orquestral, o que se manifestou na sua grande missa composta em 1803 para D. Tomé Xavier de Sousa Coutinho de Castelo Branco e Meneses (1753-1813. Conde de Redondo. Em 1811, Dona Maria I (1734-1816), já no Brasil, instituiu o título de Marquês de Borba. A missa composta por Baldi passou a ser conhecida como «Missa do Marquês de Borba». Essas relações denotam a proximidade de J. J. Baldi a círculos da nobreza dda época de Dona Maria I, cognominada "A piedosa" devido à sua extremada religiosidade.
Embora haja notícia que se dedicasse ao teatro em 1805, que tivesse escrito música para cena dos teatros da rua dos Condes e Salitre, o grande marco na sua trajetória foi o ano de 1806. Neste ano, com a morte de Luciano Xavier dos Santos, J. J. Baldi o sucedeu como primeiro mestre da Real Capela da Bemposta - tendo sido substituído como organista pelo Frei José de Santa Rita Marques e Silva (1782 - 1837). Tornou-se mestre da Sé de Lisboa, podendo aqui dedicar-se plenamente à música sacra coro-orquestral. Dessa época é o seu Te Deum a 4 vozes e órgão, instrumentado pelo Frei José de Santa Rita Marques e Silva.
Embora pouco se conheça de suas atuações à época da ausência da família real em Portugal, tem-se a menção de ter escrito um hino patriótico dedicado a Wellington em 1812, época em que atuava como capitão de milícia. Essa homenagem ao Duque de Weillington, Arthur Wellesley (ca. 1769-1852), a principal personalidade política e militar da época no combate a Napoleão, que foi vencido na vitória de Waterloo em 1815, é um indício da posição política de João José Baldi, fala do seu empenho patriótico na libertação de Portugal dos invasores.
A atenção a João José Baldi foi despertada no contexto de reflexões referentes a Marcos Antonio da Fonseca Portugal (1762-1830) em São Paulo na década de 1960. A consideração do extraordinário papel exercido por músicos italianos em Portugal dirigiu a atenção a essas relações entre os centros itálicos, em particular Nápoles, Duas Sicílias, Portugal e o Brasil no âmbito do meio ítalo-brasileiro de São Paulo, que tinha um de seus principais centros o Conservatório Musical Carlos Gomes, antiga Sociedade Benedetto Marcello.
Publicações alcançáveis em São Paulo, em particular o dicionário de Ernesto Vieira (Dicionário Biográfico de Músicos Portugueses - História e Bibliografia da Música em Portugal I, Lisboa 1900), mas também os textos sobre a música em Portugal de Frei Pedro Sinzig (1876-1952), publicados na revista Musica Sacra, trouxeram à consciência os vários músicos portugueses do século XVIII e XIX que receberam formação no Seminário da Patriarcal de Lisboa, entre eles José Joaquim dos Santos (1747-1801), Jerónimo Francisco de Lima (1743-1822), António Leal Moreira (1758-1819) e João de Sousa Carvalho (1745-1798) (Ernesto Vieira, op. cit. 83-90). As reflexões sobre as diferenças de trajetórias entre Marcos Portugal, que veio, atuou, viveu e faleceu no Brasil e João José Baldi, que ficou em Portugal e que se empenhou nos intentos de libertação do país, dirigiu a atenção a possíveis diferenças quanto a inserções políticas de ambos as personalidades.
A publicação das pesquisas de Ayres de Andrade, em 1967, trouxe à consciência que Marcos Portugal, sendo compositor de Hino da Constituição, que por décadas foi executado no Brasil, revelava ter sido ele uma personalidade de tendências constitucionais e liberais. (Francisco Manuel da Silva e seu tempo, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1967, II, págs.214-216). João José Baldi, ao contrário, deveria ter tido antes uma orientação conservadora, reativa, mantendo uma proximidade ao partido daqueles que pretendiam uma restauração da antiga ordem no sentido absolutista, diferenças de correntes que marcaram os anos anteriores e posteriores à vitória sobre Napoleão e ao Congresso de Viena.
O interesse por J.J.Baldi inseriu-se no questionamento da imagem negativa de Marcos Portugal transportada pela historiografia brasileira. Essa imagem foi considerada como injusta sob a perspectiva de suas inserções político-culturais à época da invasão bonapartista de Portugal e suas extensões no Brasil. A sempre repetida animosidade do compositor português perante o modesto músico brasileiro Pe. José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) passou a ser considerada como expressão de visão historiográfica marcada por visões e posições nacionalistas.
Essas relações e as origens da imagem negativa de Marcos Portugal foram discutidas em encontros do Centro de Pesquisas em Musicologia, entre outros com Cleofe Person de Mattos (1913-2002) como especialista dos estudos de Jose Maurício nas suas estadias em São Paulo. Nessas reflexões, levantou-se questão se as razões dessas tensões não seriam resultado de dimensões políticas mais amplas, de antipatias explicáveis em época marcada pela Independência.
As animosidades entre essas tendências políticas marcaram a vida política e cultural no Brasil, também no âmbito da família real, tendo os reacionários como principal representante a rainha Dona. Carlota Joaquina (1775-1830) no seu extremado catolicismo e formação espanhola. Diferentemente, Dom João VI (1767-1826) prestaria posteriormente juramento à Constituição. Essa possível inserção de João José Baldi em empenhos restaurativos nas suas diferentes orientações poderia contribuir à elucidação da recepção de suas obras no Brasil.
Nas pesquisas de fontes realizadas, a principal obra encontrada e estudada foi a Missa em Si Bemol com acompanhamento de orquestra, praticada em cidades do vale do Paraíba durante todo o século XIX e mesmo no início do XX, tendo sido recopiadas em 1895, 1897 e 1907. Essa missa, provinda do Rio de Janeiro como revelavam as cópias manuscritas, fora conhecida sob o título de "Missa de Baldi" ou "Balde", uma designação que favorecia associações hilariantes. Já não se tinha memória do compositor, sabendo-se apenas que era português. Dele encontrou-se também partes de uma Missa em Fá Maior.
A obra, executada com instrumentação adequada a possibilidades locais como provam as cópias de diferentes épocas, foi intensamente cultivada em celebrações solenes, o que explica o desgaste das partes. Ela exigia a participação de instrumentistas - em particular violinistas - de excpcionais aptidões técnicas. As partes conservadas foram as de trombone em do, baixo, violino 1° e 2°, suprano, basso, baixo, soprano, altus, tenor, baixa, viola, flauta, clarineta 1° e 2°, trombone.
Essa obra foi um dos documentos da continuidade da tradição da prática instrumental de cordas na região do vale do Paraíba, comprovada pelo descobrimento de obras de compositores da escola de Mannheim. A missa teria vindo a São Paulo do Rio de Janeiro, sendo difundida no alto da serra a partir do porto de Parati. A grafia e a qualidade do papel das partes mais antigas manuscritas fazem supor terem vindo nas primeiras décadas do século XIX e assim cultivadas no Rio de Janeiro em anos até mesmo anteriores a 1816. A composição teria vindo para o Brasil possivelmente com a família real.
Importante momento nessa intensificação da atenção às relações Portugal/Brasil nos estudos do Centro de Pesquisas em Musicologia e da Faculdade de Música do Instituto Musical de São Paulo foi viagem de contatos e pesquisas ao Leste e Nordeste do Brasil em 1972. Em Penedo, Alagoas, encontrou-se obras de compositores portugueses, entre eles de Marcos Portugal e João José Baldi. Em época de reformas decorrentes do Concílio Vaticano II já não eram executadas e, em viagem de estudos em 1979, já não puderam mais ser encontradas. O descobrimento de obras de compositores que haviam estudado no Seminário da Patricarcal despertou interesse em círculos histórico-musicais de São Paulo e foi importante motivação à realização do ciclo de estudos luso-brasileiros em Portugal em janeiro de 1974.
João José Baldi foi um dos compositores considerados no primeiro ciclo luso-brasileiro de estudos musicológicos realizado em Portugal de dezembro de 1973 a fins de janeiro de 1974. O evento foi iniciativa da Faculdade de Música e Educação Musical/Artística do Instituto Musical de São Paulo e preparado pelas áreas de pós-graduação em História da Música, Estética e Etnomusicologia. A sua realização contou com cooperações de outras instituições, órgãos oficiais e instâncias diplomáticas.
Os seus objetivos foram: atualizar conhecimentos e contatos, considerar com pesquisadores portugueses fontes levantadas e estudos referentes a Portugal no Brasil, promover os estudos portugueses e luso-brasileiros na música e nos estudos culturais em contextos globais da língua portuguesa e lançar as bases para cooperações futuras.
Nesses estudos, procurou-se considerar o estado dos conhecimentos a respeito de J.J. Baldi e consultar arquivos. A programação incluiu uma visita a Leiria, onde J. J. Baldi atuara como música da Corte do Marquês de Alorna. O título remontava a relações com a Capitania de São Paulo. Fora concedido por D. João V (1689-1750) em 1748 ao militar D. Pedro Miguel de Almeida (1688-1756), conde de Assumar, que fora governador da capitania de São Paulo e Minas e que posteriormente foi nomeado Vice-Rei da Índia.
Esses estudos tivram continuidade nos anos que se seguiram com a participação de pesquisadores portugueses. De relevância foi considerar os manuscritos conservados na Biblioteca da Ajuda. Entre as obras conhecidas, além de sinfonias, registraram-se uma Missa a quatro vozes, Credo, Te Deum e obras para Ofícios de Horas, Responsórios para as Matinas de São Miguel, para as Matinas do Natal e para as Matinas da Conceição. Além das Matinas de Natal de 1811, a três vozes, tendo-se conservado a parte de orgão, mencionam-se os Responsórios para a festa do Natal feitos para a Real Capela de Bemposta, assimn como a Missa concertada a 3 vozes.
A partir da orientação seguida no Brasil, a atenção foi dedicada a questões de difusão e permanência em repertórios, constatando-se também em Portugal a sua presença em localidades menores durante o século XIX. Constatou-se, por exemplo, que obras de Baldi foram executadas em Olhão, Algarves. Como no Brasil, obras de compositores formados no Seminário da Patriarcal foram "consertadas" no decorrer do século XIX, registrando-se nos manuscritos conservados o nome de Antonio de Jesus Lopes. A atenção foi despertada também pelo fato de encontrar-se uma missa simplesmente designada como "Missa de Balde" em Portugal, o que corresponde ao uso constatado no Brasil.
Os estudos de J.J.Baldi tiveram continuidade em grupo de trabalho luso-brasileiro constituído na Universidade de Colonia em 1975. Os objetivos dos pesquisadores brasileiros e portugueses era o de realizar estudos de fontes e de releituras da bibliografia referente à música em Portugal e no Brasil no sentido de promover uma concepção de musicologia de orientação cultural dirigida a processos.
A constituição de um grupo para estudos com essa finalidade tinha sido sugerida em São Paulo e em conferências levadas a efeito em Portugal em 1973/74. Os trabalhos puderam contar com a biblioteca especializada de Maria Augusta Alves Barbosa (1912-2012), professora do Conservatório Nacional de Lisboa.
Os trabalhos basearam-se em pesquisas anteriormente desenvolvidas no Brasil a partir de cópias de materiais levantados. No Instituto de Musicologia de Colonia contaram com a orientação dos musicólogos Karl-Gustav Fellerer (1902-1984) e Heinrich Hüschen (1915-1993), assim como de Robert Günther (1929-2015), representante da Etnomusicologia. R. Günther era o coordenador de projeto dedicado às culturas musicais na América Latina do século XIX. Cleofe Person de Mattos (1913-2002) participou de reuniões quando de suas.estadias na Alemanha.
Em 1976, o século XIX foi tema dos Dias da Música de Kassel (Kasseler Musiktage), quando considerou-se problemas de obras, compositores e correntes pouco estudadas ou que caíam no esquecimento. Entre esses compositores, lembrou-se, no âmbito do projeto brasileiro, de J.J. Baldi. Salientou-se que a sua consideração adequada pressupõe estudos de contextos e processos político-culturais em contextos globais. Baldi desempenha assim um papel significativo numa pesquisa da música de orientação culturológica preconizada pelo projeto brasileiro.
Em 1975, ano no qual se celebrou os 450 anos de G. Pierluigi da Palestrina, as atenções concentraram-se primordialmente a questões de música sacra. O significado dessa data para o desenvolvimento dos estudos de música sacra realizados no Brasil, tinha sido reconhecido em São Paulo quando da elaboração do projeto. Os estudos e as reflexões voltaram-se não só ao remoto passado tridentino, como também à permanência de referenciações com a época e o estilo de Palestrina através dos séculos, questionando-se em particular o significado e as características que essa referenciação tomaram no século XIX, em especial nas concepções e práticas do Cecilianismo alemão.
Essa tomada de consciência da necessidade de reconsiderações de visões e valorações do século XIX possibilitou estudos mais objetivos da produção sacro-musical coro-orquestral de compositores como J.J. Baldi, Marcos Portugal, Francisco Manuel da Silva (1795-1865) e outros até então silenciados ou criticados por religiosos como inadequados ou mesmo como exemplos de decadência da música sacra. Esse debate marcou o colóquio de musicólogos e doutorandos realizado em 1978 e 1979, onde procurou-se considerar a tradição coro-orquestral de Portugal e do Brasil a partir de seus próprios pressupostos e inserções em contextos e processos. Esses estudos motivaram e fundamentaram a realização do I Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira, realizado em São Paulo, em 1981.
A missa de Baldi foi analisada em comparações com obras de outros compositores da sua época. As análises constataram características estilísticas que diferenciam a linguagem musical daquela de outros compositores. Surge como surpreendente a opulência de ornamentos nas partes instrumentais, assim como figurações e movimentos escalares que exigem considerável aptidão técnica de músicos.
Essas características de estilo, em particular a frequencia de figurações melódicas rápidas, em geral descendentes, refletidamente construídas na linguagem musical, fazem com que o estilo de Baldi se diferencie daquele de obras de Marcos Portugal e de outros compositores. Tornam-se questionáveis afirmações sempre feitas de que as suas obras teriam o mesmo estilo de Marcos Portugal ou que Baldi estaria à sombra deste compositor. Na sua peculiaridade, a sua linguagem musical, nervosa e marcada por figuras ornamentais nas partes instrumentais e em solos, quase que como fixações de improvisos, indica a permanência de características estilísticas mais remotas. Essas singularidades levaram á discussão sobre a inserção de Baldi em correntes estilísticas e de concepções sacro-musicais mais presas à tradição. Discutiu-se a necessidade de se diferenciar entre tendências restauradoras nos seus diferentes aspectos e manutenção de concepções e linguagens estéticas do passado, considerando as suas relações com posições político-culturais, no caso do passado do antigo regime absolutista.
O Laudamus do Gloria da Missa em si bemol constituiu o centro das atenções. Pela virtuosidade exigida do solista representa um exemplo excepcional de uma interpretação do texto que salienta musicalmente a sua natureza hínica e a glorificação da majestade divina. Procurou-se comparar composições de autores brasileiros com esse Laudamus de Baldi no sentido de detectar possíveis recepções, similaridades e diferenças. Entre as obras consideradas, salientaram-se o Laudamus da "Missa Grande" (Mi Bemol) de Francisco Manoel da Silva, o Laudamus da Missa de São Pedro de Alcântara de Elias Álvares Lobo (1834-1901) e o Laudamus da Missa S. Sebastião de A. Carlos Gomes (1836-1896).
Os estudos tiveram prosseguimento nas décadas seguintes, sendo a "Missa de Baldi" considerada a partir de 1985 em eventos do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa.
Baldi foi objeto de estudos conjuntos com o maestro e pesquisador português Manuel Ivo Cruz (1935-2010) em várias ocasiões. Foi tema de cursos e colóquios, entre eles no seminário de tema Portugal na Musicologia na Universidade de Colonia em 2000/1 e no colóquio internacional pelo ano do Porto como Capital Européia da Cultura em 2002.
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
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