BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
Em anos marcados pelo bicentenário de nascimento de Dom Pedro II cumpre considerar obras a ele dedicadas e os contextos em que se inseriram. Esse intento não é recente, tanto em estudos conduzidos no Brasil como na Europa. Remontam a pesquisas realizadas a partir da década de 1960 em São Paulo e que tiveram continuidade em âmbito internacional a partir de 1974. O significado desse intento decorre sobretudo do fato de que essas obras oferecidas ao Imperador do Brasil propiciam conhecimentos de relevância para estudos de relações, de contextos internacionais e fatos históricos.
Como representante da nação durante muitas décadas do século XIX, as obras a ele dedicadas dizem respeito ao Brasil, à sua imagem e significado no Exterior e a sentimentos patrióticos no próprio país, à sua história cultural e da nacionalidade no século que foi o da Independência. Esses estudos são assim de significado para estudos de relações da música com a história política ao lado daqueles voltados a estudos de hinos. Neles, a atenção dirige-se necessariamente à música militar e cívica, à prática musical de bandas militares e civís, estas no passado estreitamente relacionadas com partidos.
Compreende-se, assim, que a pesquisa de bandas de música e o estudo de fontes em acervos de corporações constituíram importante tarefa nos estudos desenvolvidos no âmbito do Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão em São Paulo, oficializado como sociedade em 1968.
Entre os arquivos consultados, destacou-se aquele da Polícia Militar de São Paulo, recorrente à da antiga banda da Força Pública. As obras ali conservadas permitiram conhecimentos de músicos, composições, fatos e datas que marcaram os estudos musicológicos. Músicos dessa e de outras bandas participaram ativamente em iniciativas várias, em aulas e concertos. Esses elos teriam continuidade nas décadas que se seguiram. Significativamente, a banda da Polícia Militar realizaria, em 1981, concerto junto ao monumento do Ipiranga quando da fundação da Sociedade Brasileira de Musicologia.
Marco inicial no desenvolvimento dos estudos foi a rememoração. em 1966, do centenário de uma das mais violentas batalhas da Guerra do Paraguai: a batalha que teve lugar na região de Estero Bellaco no dia 24 de maio de 1866, data que é lembrada na denominação de uma das principais ruas do centro da cidade de São Paulo, a 24 de maio.
Essa batalha, uma das mais violentas da Campanha de Humaitá na Guerra do Paraguai, desencadeada por um ataque das forças paraguaias, levou a contra-ataque e por fim à vitória das nações da Tríplice Aliança - Brasil, Argentina e Uruguai - o que explica o significado da data para os vitoriosos.
Nela participaram cinco batalhões de infantaria, uma bateria de artilharia, num total de 6000 soldades e, pela primeira vez uma divisão dos Voluntários da Pátria. O contra-ataque esteve sob o comando do General Manuel Luís Osório (1808-1879), razão da celebridade daquele que posteriormente seria o Marques de Herval. Essa vitória seria ensombreada pelo grande número de mortos, feridos de todos os lados e ca. de 300 paraguaios aprisionados pelos aliados.
A obra A Grande Batalha de Estero Bellaco
Essa batalha é celebrada em obra para grande banda militar: a Grande Batalha Estero Bellaco em 24 de Maio de 1866, offerecido a S. M. o Senhor D. Pedro 2° por Manoel Miz Ferreira de Andrade. As partes instrumentais dessa composição, manuscritas, que trazem a indicação de terem sido adquiridas do comércio de músicas no Rio de Janeiro, foram conservadas em coleções particulares, recopiadas em fins do século XIX e mantiveram-se em repertórios de bandas ainda nas primeiras décadas do século XX em cidades do vale do Paraíba.
Essa obra despertou grande interesse não só de músicos como também de históriadores. Foi considerada por pesquisadores de música e de estudos culturais, assim como por docentes e estudantes de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da Universidade de São Paulo. Motivou estudos mais atentos da Guerra do Paraguai e de suas implicações para a vida cultural e musical de São Paulo e de outras regiões do Brasil. Foi considerada no contexto mais abrangente da música nas guerras do sul do Brasil, e,o. com o estudo da vida e da obra de João Pedro Gomes Cardim, o compositor português que, no Brasil, presenciou eventos bélicos da Guerra do Paraguai, fatos sempre rememorados pelos seus descendentes e cujas obas puderam ser copiadas de originais conservados nos arquivos do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. A obra foi considerada também em relações com a música marcial e cívica de outras épocs e contextos.
Sob o aspecto dos estudos musicais, reconheceu-se o significado dessa obra instrumental como extraordinário exemplo de música programática no Brasil. Ela trata musicalmente de um programa extra-musical, oferece sonoramente imagens da batalha de Estero Bellaco, refere-se a ações e interpreta decorrências, lamenta o sofrimento e a morte de soldados e celebra a vitória brasileira, soando por fim triunfantemente o Hino Nacional.
A instrumentação da obra inclui rufos e canhões. Inicia-se com a ordem do General Osório no contra-ataque, com rufos e preparação do atacar, representa sonoramente o ataque e os avanços, sempre intercalados com tiros de canhão, o lançar e o cessar fogo, o clamor dos feridosl, o debandar e o dobrar das campainhas.
Criando musicalmente imagens e incitando a imaginação de cenas adquire significado para estudos de relações entre música e visualizações, o que despertou o interesse na área de Comunicação Visual na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo por parte de universitários que participavam m dos trabalhos do movimento Nova Difusão.
A Grande Batalha de Estero Bellaco foi uma das fontes levantadas em pesquisas no Brasil tratadas em projeto dedicado ao desenvolvimento de uma musicologia orientada segundo processos em contextos internacionais iniciado com ciclo de estudos luso-brasileiros em Portugal em 1974 e sediado a seguir na Alemanha, no Instituto de Musicologia de Colonia. A obra despertou grande interesse entre os colaboradores de projeto editorial dedicado às culturas musicais da América Latina então em andamento Foi considerada sobretudo como um significativo documento histórico para estudos da Guerra do Paraguai por pesquisadores do Instituto Português-Brasileiro.
Foi tratada como um exemplo da composição de batalhas até então estudadas apenas em contextos europeus. A obra surge como um exemplo expressivo de um quadro bélico, de uma pintura que, como em muitas obras de compositores europeus de diferentes épocas incluiu efeitos musicais, apelos, tocar de sinos de triunfo, instrumentos de percussão para rufos e imitações de tiros de canhões e de armas. A dedicação ao imperador pode até mesmo ser considerada em tradição que insere as batalhas em contextos de música de Côrte. Hans Schmidt (1930-2019), musicólogo especializado em estudos de Beethoven, não podia deixar de lembrar da batalha de Wellington op. 91 do compositor.
A consideração da Grnde Batalha de Estero Bellaco em colóquios que precederam defesa de tese em 1979 foram marcados pela problemática da idealização de fatos marciais e do papel da música na visão histórica de batalhas a serviço do despartar de sentimentos patrióticos, de orgulho por feitos heróicos e de triunfo, obscurecendo os horrores da guerra e silenciando consciências. Para a discussão do papel questionável deempenhado pela música, em particular da pintura na encenação de batalhas, a consideração da obra oferecida a D. Pedro II foi acompanhada pela leitura de texto das Visões do Sertão de A. d'Escragnolle Taunay (1843-1899), consideradas em traduç∫ao para o alemão.
"Que importavam à sua apreciação de artista nas armas os resultados do embate dos homens a combaterem corpo a corpo ou o sangue derramado, a eliminação repentina de centenas e milhares de entes? (…) E que terríveis esses lanceiros cahindo em vertiginosa carreira sobre a infanteria debandada. A pesada arma parece tão leve! Com a ponta para a frente colhe o pobre infante e o levanta no ar todo encolhido atirando-o longe e já moribundo. E tudo isto com rapidez vertiginosa. Vi assim lancear vinte e trinta soldados, em poucos minutos. E cahiam agachados, unidos, esmigalhados, os miseros. / Nesses momentos, o panico é irresistivel, perdido o sentimento salvador da cohesão, que reune os dispersos em pequenos grupos, quando não seja senão tres. Muitos jogam fora a espingarda, param de repente na fuga e põem os braços atraz da cabeça como que a defenderem a nuca. (…) Observei na batalha de Campo Grande, soldados que de subito estacavam, levavam para a frente os braços e espichavam o pesccoço para mais depressa receberem a cutilada final, que devia acabar com a trafédia individual naquella hora suprema e irremediavel. (…)" (Visconde de Taunay. Visões do Sertão. São Paulo: Melhoramentos 2a. ed. s/d págs. 75-76)
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
O livro pode ser adquirido aqui