BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
Francisco Manuel da Silva (1795-1865), perenizado como compositor do HIno Nacional brasileiro, foi a principal personalidade da vida musical do Rio de Janeiro durante várias décadas do século XIX. Marcou como poucos outros a vida musical do II Império. No momento em que se rememora o nascimento de D. Pedro II há 200 anos, a sua vida e obra não podem deixar de ser consideradas.
Já há muito reconheceu-se que toda uma época pode ser considerada a partir de Francisco Manuel da Silva. Foi título de estudos de Ayres de Andrade, publicados em 1967, obra de extraordinário significado não só pela profusão de dados levantados em pesquisas como pelo seu escopo e pelos impulsos que forneceu (Francisco Manuel da Silva e seu tempo: 1808-1865: uma fase do passado musical do Rio de Janeiro à luz de novos documentos. 2 vols Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
Embora já considerado em publicações anteriores, essa obra de Ayres de Andrade ofereceu novos dados e abriu perspectivas para estudos então em desenvolvimento na década de 1960 em São Paulo. Esses estudos foram orientados desde o início segundo processos culturais conduzidas a partir da música e tiveram continuidade desde 1974 em cooperações internacionais na Europa. As fontes então levantadas e os estudos desenvolvidos form tratados em colóquios, conferências, simpósios, cursos e seminários universitários. Muitos de seus aspectos foram divulgados pela Revista Brasil-Europa. Torna-se oportuno em anos marcados pelo bicentenário de D. Pedro II recapitular algumas dessas pesquisas e reflexões. A atenção a D. Pedro II nos estudos de contextos e relações culturais entre o Brasil e a Europa evidencia-se pelo seu interesse pelo desenvolvimento do pensamento, das ciências e das artes, pelos seus apoios a pesquisadores, artistas e músicos, assim como pelas suas participações em instituições científicas e culturais brasileiras e européias.
Francisco Manuel da Silva foi uma das personalidades da história da música no Brasil consideradas com mais atenção nos estudos culturais e musicológicos desenvolvidos no âmbito de programa brasileiro na Europa das últimas décadas. As análises basearam-se em materiais documentais levantados e estudados no Brasil. Esses estudos foram sediados na Universidade de Colonia e tratados em diferentes centros de pesquisas, instituições, países e contextos.
Lembrar Francisco Manuel da Silva significa dirigir a atenção promordialmente a desenvolvimentos culturais da época que se seguiu à Abdicação de D. Pedro I, à declaração da Maioridade, à Coroação de Dom Pedro II e às primeiras décadas do II Império. Essa época não pode ser considerada sem que se dirija a atenção a seus pressupostos, a desenvolvimentos precedentes, assim como àqueles se seguiram, decorrentes de suas iniciativas, atuações e ensino. Essas décadas do século XIX devem ser consideradas nas suas inserções em contextos processuais. A visão não pode ser delimitada por uma acepção de periodização histórica esquemática, definida por marcos da história política que apenas podem ser visos como pontos de referência.
A vida, a criação musical e as múltiplas atividades de Francisco Manuel da Silva inscrevem-se em desenvolvimentos que devem ser considerados sob diferentes aspectos, políticos e político-culturais, sociais, etno-sociais e eclesiásticos e que não se limitam ao Brasil. Antiga colonia de Portugal, Reino Unido Portugal-Brasil-Algarves, estreitamente relacionado com decorrências européias, os processos e interações nos quais a música se insere devem ser considerados em contextos abrangentes, transnacionais.
Esta foi a orientação que marcou e marca um programa musicológico originado no Brasil e desenvolvido internacionalmente nas últimas décadas. A condução de estudos nas Ciências Humanas a partir da música tem a potencialidade de dirigir a atenção a dimensões sócio-psicológicas e mentais pouco consideradas ou tratadas de forma arbitrária e subjetiva em interpretações pouco fundamentadas. A música, como princípio condutor dos estudos científico-culturais nas suas várias contextualizações - Cultural Studies, Kulturwissenschaft - determina perspectivações, focalizações e, sobretudo, a consideração de sentidos e dimensões de fatos e decorrências em geral pouco consideradas.
Pode-se lembrar que, em definições de remotas origens, a música move afetos, leva a movimentações interiores, psíquicas e psíquico-mentais, individuais mas também coletivas, o que abre expectativas quanto às possibilidades de uma maior fundamentação de análises de fatores psíquicos, emocionais que não só expressam, mas sim também impulsionam desenvolvimentos. Essa reciprocidade - a de uma musicologia orientada segundo processos em contextos globais e a de uma culturologia que tem a música como princípio condutor - é a orientação que tem determinado os estudos nos quais também Francisco Manuel da Silva e sua época se inserem.
A formação músico-cultural de Francisco Manuel da Silva foi marcada por um lado pelo ensino elementar que recebeu do Pe. José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), mas também e sobretudo pela sua participação como menino cantor da Capela Real. Dedicou-se também ao aprendizado de instrumentos, em particular do violoncelo. A atenção tem sido dirigida à sua atuação como menino-cantor.
Tornando-se membro efetivo da Capela Real em 1812, então com 17 anos, vivenciou inevitavelmente os problemas decorrentes de mudança de voz que meninos cantores enfrentam. Em época na qual mulheres não participavam do coro, sendo os sopranos - ou tiples - falsetistas ou castrados, em tradição já herdada de Portugal, pode-se ver nessa experiência pessoal razões que justificam suas posições, intenções e ações de décadas posteriores de reforma da Capela, então já Imperial. Passaria a ver a participação de falsetistas, já então em idade avançada, como ultrapassada, prejudicial à qualidade sonora do coro, levando à sua substituição por alunos do conservatório então recentemente fundado.
Essas relações entre a sua formação como menino-cantor, o seu empenho de recuperação de antigo nível e aperfeiçoamento do coro da Capela Imperial como mestre-de-capela e a formação de meninos cantores pelo Conservatório Imperial não podem ser minimizadas. Correspondem a desenvolvimentos que podem ser constatados em muitas catedrais, igrejas e conservatórios na Europa.
A maior atenção, porém, merece o fato de ter recebido ensinamentos de Marcos António da Fonseca Portugal (1762-1830), a personalidade de maior projeção internacional da vida musical em Portugal e que, vindo ao Brasil, ocupou posições de alto relêvo, desempenhou importante papel na vida musical e político-cultural no país, nele integrou-se, viveu e nele veio a falecer. A necessária revalorização de Marcos Portugal nos estudos histórico-musicais, que vem sendo já há muito reconhecida, tem implicações para os estudos referentes a Francisco Manuel da Silva. Pouco considerada tem sido sobretudo a sua relação com o irmão de Marcos Portugal, Simão Vitorino Portugal (1774-1825), assim como com Fortunato Mazziotti (1782.1855), com quem atuou na Capela Imperial.
Não menor atenção deve ser dada ao fato de ter recebido aulas teórico-musicais e de composição com Sigismund Neukomm (1778-1858) a partir de 1816. A admiração por esse músico austríaco, representante de correntes musicais e da diplomacia cultural estreitamente relacionadas com a restauração européia, – Neukomm foi o compositor do Te Deum para Luís XVIII (1755-1824) – manifestou-se no empenho de Francisco Manuel quando, em décadas posteriores, prepararia a execução de obra de Neukomm por ocasião da inauguração da estátua equestre de Dom Pedro I segundo os dados levantados por Ayres de Andrade (op.cit II, 204-206).
Principais vertentes quanto a concepções e de linguagens sacro-musicais que teriam marcado a formação de Francisco Manuel da Silva podem ser assim diferenciadas, aquela de Marcos Portugal e de uma tradição da música em Portugal - que teve Nápoles como um de seus principais centros - e aquela de Sigismund Neukomm, centro-européia, o grande admirador de José Maurício.
Inserções religioso-culturais: Ordens Terceiras – São Francisco de Paula e São Francisco da Penitência
A formação de Francisco Manuel da Silva como menino cantor, pela vida musical de igreja e pelo ensino que obteu, dizem respeito a seus condicionamentos culturais e, neles, o papel desempenhado pela sua religiosidade. À época da Independência, Francisco Manuel tornou-se irmão da Ordem Terceira de São Francisco de Paula e, mais tarde, da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, igreja que se levanta ao lado do convento e igreja de Santo Antonio no alto da colina no centro do Rio de Janeiro. Ambas foram motivo de aquarela de Eduard Hildebrandt (1818-1869), cuja obra foi estudada e publicada por Gilberto Ferrez (Die Brasilienbilder Eduard Hildebrandts, Berlin: Henschel,1988).
A sua vida religiosa, marcada pela cultura espiritual dessas irmandades, pela veneração de São Francisco de Paula e de São Francisco de Assis, inseriu-se assim em tradição marcada pelo despojamento pessoal, pela modéstia, pela humildade, pela atenção aos pobres e necessitados, à caridade e à mística. Essa cultura espiritual dessas irmandades tem sido um dos principais objetos de estudos desenvolvidos com teólogos e historiadores eclesiásticos nos estudos desenvolvidos na Europa e em Roma.
Essa religiosidade de Francisco Manuel da Silva não poderia deixar de ter implicações para a sua vida e atuações. Considerá-la abre perspectivas para um melhor entendimento do seu empenho pelo amparo a músicos, pela beneficiência, pela formação musical de meninos, que se relacionoutam bém com aquela de seu amparo. O conservatório deve ser considerado à luz da antiga tradição dos conservatórios europeus, a do abrigo de meninos órfãos e desamparados e de seu preparo para uma vida de músicos, uma - e em muitos casos única - possibilidade profissional para círculos sociais menos privilegiados.
Essa função social do conservatório da capital do Império tão marcado por Francisco Manuel não pode deixar de ser considerada nos estudos histórico-musicais e sócio-culturais. A instituição não deveria ser vista a partir de projeções no passado da imagem de conservatórios de épocas mais recentes. Basta considerar que os seus alunos que mais se projetaram – como Antonio Carlos Gomes (1836-1896) ou Henrique Alves de Mesquita (1830-1906) – provinham de meios sociais modestos, eram de famílias pobres e descendentes de uniões de europeus com indígenas ou africanos.
A orientação religiosa nas suas implicações na condução de vida e nas atuações de Francisco Manuel como membro das irmandade de São Francisco de Paula e de São Francisco da Penitência era próxima àquela que se expressa na veneração de São Pedro de Alcântara, santo venerado como sendo o protetor do Brasil e segundo o qual D. Pedro II foi batizado. Foi o título da Missa São Pedro de Alcântara a ele oferecida por Elias Álvares Lobo (1884-1901) e nome do importante Teatro São Pedro de Alcântara no Rio de Janeiro. Essa proximidade, nas suas implicações quanto a convicções, consciência, condução de vida e procedimentos entre Francisco Manuel da Silva e D. Pedro II manifesta-se no apoio que este concedeu a jovens músicos de proveniência humilde e ao conservatório como instituição.
Foram justamente essas características pessoais de formação, convicções e atitudes, de modéstia e seriedade perante a realidade social, de repúdio à pompa e de auto-engrandecimento que marcaram a imagem do Brasil transmitida em relatos de viajantes, e personificadas pelo próprio D. Pedro II nas suas estadias na Europa que devem ser consideradas em estudos da personalidade, da atuação e da obra de Francisco Manuel da Silva. Ele próprio.experimentou momentos de dificuldades quando perdeu o seu cargo como violoncelista com a dissolução da orquestra da Capela Imperial em época de crise econômica do Brasil em 1830/31.
Essa época, a da Abdicação, quando D. Pedro I abandonou o país para lutar pela constitucionalidade em Portugal, do qual já era rei como sucessor de D. João VI desde 1826, foi também aquela que marcou uma fase do processo emancipatório, de afirmação e defesa da independência, da libertação com relação a Portugal, do Brasil que seria encabeçado por um soberano já nascido no país, então ainda criança. É dessa época que significativamente remonta o hino que, pelo que tudo indica, seria aquele que se tornaria o Hino Nacional.
O nome de Francisco Manuel da Silva permanece marcado por essa expectativa de nova era, do Brasil que iniciava uma fase decisiva como nação autônoma. Na grave situação econômica e social que marcou esses anos, e que atingiu em especial também músicos, pertencentes a grupos sociais e profissionais mais vulnerávies da sociedade. O empenho para o amparo de necessidades, – decorrente de sua religiosidade condizente com as suas próprias condições existenciais – levaram Francisco Manuel da Silva a organizar e a seguir presidir uma sociedade de beneficiência de músicos.
Significativamente, essa associação de beneficiência dsempenharia papel relevante quanto da fundação do conservatório. Correspondente a essa missão de amparo e de auxílio, pode-se ver a sua atividade de ensino musical, publicando compêndios e, posteriormente, dirigindo cursos de rudimentos. A sua participação em sociedades de concertos, assim como em instituições de arte dramática e de artes em geral poderiam ser tambem consideradas a partir de principios que marcaram a sua cultura espiritual, a sua vida e atividades.
Um marco na sua tragetória de vida foi a declaração da Maioridade e a Coroação de Dom Pedro II, para a qual compôs o Hino da Coroação. Como as mudanças de textos e adaptações musicais indicam, estabelecem-se relações entre Abdicação e Coroação, e o hino, que se tornaria o nacional vincula-se estreitamente com o sentido e o estado de espírtio de ambos marcos. Seria porém inadequado considerar o hino, como expressão de grandiloquência e de pompa. Deve ser antes analisado nas suas inserções em desenvolvimentos marcados que foram por anelos de defesa da independência e da liibertação de uma sempre temida subordinação e sobretudo nas similaridades de sua linguagem musical com obras sacro-musicais de cunho hínico como aqueles dedicados ao Sacris solemniis levantados em pesquisas.
Uma ocorrência de extrordinário significado para a historia da musica no Brasil foi a restituição da orquestra na Capela Imperial, extinta que fora em 1831, para o qual Francisco Manuel da Silva se empenhou e da qual tornar-se-ia mestre-de-capela. Esta foi uma época marcada pela recuperação de um nivel qualitativo já remoto, da procura de alcance de estado que se tinha mantido na memória da época da presença da corte portuguesa no Brasil e do Reino Unido. Pode-se considerar essa retomada da tradição coro-orquestral como uim marco significativo de uma auto-consciência e não como não intentos de cunho retroativo; como recupeeração de seu papel como instituição modelar, expressão e agente impulsionador de novos desenvolvimentos.
A religiosidade de teor franciscano de um mestre-de-capela que era membro da irmandades pode ser um caminho para a consideração de concepções que marcaram o cultivo da música sacra na Capela Imperial. Ela não se coaduniou com outras tendências da prática musical em igrejas na época, nas quais outros critérios e intenções vigoravam, e que, através do emprêgo de música secular, árias de óperas conhecidas, procuravam atrair fiéis. O cultivo da música na Capela Imperial não podia ter sido marcada por intentos de espetacularidade. pela execução de obras com o sentido de obtenção de aplausos.
A reinstitucionalização da orquestra na Capela Imperial não se justificou apenas pela deficiência de órgão e não deve ser mal compreendida como expressão de uma decadência da música sacra como é imputada á prática coro-orquestral de forma generalizada. A orquestra na Capela Imperial retomava uma tradição que de forma alguma fora superficial, responsável por uma prática musical em igrejas indigna do culto, como anatemizado por representantes de correntes restauracionistas da música sacra, em particular daqueles marcados pelo Cecilianismo europeu. Ela traz à consciência a necessidade de maiores diferenciaçõrs, também na consideração da história religiosa, do culto e da espiritulidade. A música sacra de Francisco Manuel da Silva pode contribuir a essas análises e á percepção de valores na cultura imaterial na sua transformabilidade.
Estudos de Francisco Manoel da Silva sob a perspectiva de renovação de perspectivas nos estudos culturais e musicais remontam à década de 1960 em São Paulo. O compositor tinha sido sempre lembrado na literatura histórico-musical e sobretudo o Hino Nacional sempre tinha sido tratado em estudos e compêndios escolares, assim como na formação de professores de Canto Orfeônico. Entre os vários músicos, professores e pesquisadores que se ocuparam com o Hino Nacional salientou-se Martin Braunwieser 81901-1991), que, partindo da linguagem musical do hino, surpreendente pelas suas qualidades em comparação outras de hinários nacionais de outros países, dirigiu a atenção às dificuldades de sua correta execução.
O hino passou a ser considerado como expresão de um estado de espírito que teria marcado uma época e uma produção musical que devia ser corroborada com a análise de outras obras do compositor e de seus contemporâneos. Os estudos, conduzidos em diálogos com professores de Canto Orfeônico e de História da Música, tiveram prosseguimento no âmbito dos trabalhos do Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão.
Em estudos de acervos, em cidades do interior, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, procurou-se levantar fontes indicadoras da difusão e cultivo de obras de Francisco Manuel da Silva. Entre essas fontes, particular atenção mereceram não só manuscritos de cópias do hino, como também de obras sacro-musicais do compositor então encontradas e que permitiram análises comparativas quanto a características de estilo do compositor e sua época.
Em nível superior, essas fontes foram consideradas em cursos da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo, no Centro de Pesquisas Histórico-Musicais com o seu Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista então criados em 1973. No âmbito de pós-graduação em História da Música, quando elaborou-se o projeto a ser conduzido em cooperações internacionais, decidiu-se que Francisco Manuel da Silva mereceria ser salientado - ao lado de A. Carlos Gomes (1836—1896) já no primeiro encontro a ser realizado no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia, o que se deu no dia 2 de dezembro de 1974, significativamente data de nascimento de D. Pedro II.
Nas pesquisas desenvolvidas no decorrer da década de 1960 no Brasil, o documento mais antigo encontrado em São Paulo do Hino Nacional foi o de uma versão reinstrumentada no verso de partes da Missa em Mi Bemol do compositor, cujas partes mais antigas trazem a data de 1843. Outras partes indicam ter sido a obra várias vezes recopiada, o que dá testemunho de sua longa permanência no repertório da Capela Imperial e de sua difusão na então Província. Algumas partes encontradas em diferentes cidades trazem a data de 1865, outras de 1873, e mesmo de anos posteriores ao fim do Império, em 1893, e no fim do século, em 1898.
A missa foi levada a outras cidades, sendo praticada em igrejas do vale do Paraíba, o que indica um caminho de difusão a partir do porto de Parati e do caminho que, subindo a serra, levava ao interior. As partes manuscritas são para coro a quatro vozes - Soprano, Altus, Tenor, Basso - com orquestra constituída por três violinos, viola, cello, flauta, duas clarinetas, trombone e oficleide. Constata-se assim a predominância de arcos, o que corresponde à formação de Francisco Manuel da Silva como instrumentista de cordas, em particular de violoncelo.
A Missa em Mi bemol foi conhecida como "Missa Grande". Essa denominação não pode ser entendida apenas pelo fato de tratar-se de uma obra de grandes dimensões e aparato orquestral. A designação deve ser compreendida a partir de seus sentidos e funções no culto, da sua linguagem musical nas suas intrínsecas relações com o texto, o que também justifica a extraordinária extensão do Kyrie e do Gloria com os seus solos, levando correspondentemente a uma longa espera dos celebrantes no altar.
A "Missa Grande" surge assim como um exemplo do extraordinário significado das partes introdutórias do Ordinarium missae e assim da música na preparação interior dos participantes antes da liturgia da palavra. A designação "Grande" pode ser assim entendida como de uma grandeza em sentidos mais profundos, tanto no tratamento do conteúdo do Kyrie como do Gloria. A grandiosidade do Gloria da "Missa Grande" corresponde à magnitude do canto hínico de louvor do Glória a Deus nas alturas e de uma compreensão do papel da música como glorificação da majestade divina e da movimentação interior dos ouvintes aos altos no sentido de "corações ao alto".
Os seus extensos solos, que exigem extraordinárias qualidades vocais dos solistas não devem ser compreendidos como expressão de intentos de demonstração de virtuosidade, de entrada de música de teatro ou de ópera na igreja. Ela deve ser considerada a partir da compreensão profunda dos sentidos dos textos e estudada a partir da história da cultura religiosa, da liturgia e, no caso, da orientação espiritual de Francisco Manuel da Silva. É significativo o extraordinário pêso dado pelo compositor ao Qui sedes ad dexteram patris, miserere nobis. Quoniam tu solus sanctus, tu solus dominus, tratado com solo de baixo que, nas partes, traz o comentário de algum regente como sendo ou exigindo "respeito".
Essa atenção do compositor ao Qui sedes ad dexteram patris, manifesta o cristocentrismo de sua cultura religiosa. Essa orientação torna também compreensível que a obra tenha sido executada na solenidade de Páscoa, como o termo "Ressurreição" marcado nas partes indica. Ela foi também executada em outras festas solenes do calendário, como aquelas da Assunção de Nossa Senhora ou mesmo em datas de regozijo nacional, o que explicaria a anotação do Hino Nacional no verso de partes.
A data de 1843 nas partes manuscritas mais antigas encontradas da Missa em Mi bemol é a do ano marcado pela reorganização da Capela Imperial e da reinstitucionalização da orquestra por portaria ministerial de 19 de maio de 1843 (Ayres de Andrade, op.cit. I, 216). Essa data remete a atenção ao empenho de Francisco Manuel da Silva então recentemente nomeado a mestre-de-capela, exercendo o cargo juntamente com Francisco Mazziotti (†1855). Francisco Manuel da Silva, - que era mestre compositor da Imperial Câmara desde 1841 -, tinha sido nomeado mestre compositor da Imperial Capela em 17 de março de 1842, sucedendo ao falecido Simão Vitorino Portugal, o irmão de Marcos Portugal.
A obra remete a atenção aos anos marcados pelo empenho de restituição da orquestra da Capela e que foram justificados sobretudo pelo desejo de D. Pedro II de que o culto fosse celebrado com esplendor. Como explicitamente registrado em requerimento de autoridade eclesiástica responsável pela inspeção da Capela Imperial de 1840, "S.M. o Imperador é muito apaixonado de música e quer as suas funções com todo o esplendor", como registrado por Ayres de Andrade. Como os instrumentistas tinham sido despedidas em junho de 1831 logo após a Abdicação, tornava-se necessário contratá-los para as respectivas funções, o que representava um grande dispêncio, maior do que se fossem efetivados.
Em outro documento de 1841, esse desejo de Dom Pedro II é mais uma vez salientado: "(…)e ainda que agora sejam chamados para poucas funções; contudo faz a igreja muita vantagem por tê-los sempre prontos para todas as festividades que houverem e a que assistir S.M.I.(…)" (op.cit. I, 165-166). O autor publicou também a exposição dos mestres da Capela Imperial de dezembro de 1842, que, empenhados pela dignidade do culto, reafirmavam a necessidade da reinstituição da orquestra, do decoro, esplendor e também da maior economia dela resultante : "(…) como outrora houve no govêrno do Avô e do Pai de S.M. o Imperador, com o que, não só se conseguirá melhor desempenho nessas funções, como também se pode contar para qualquer serviço extraordinário que se faça mister; sendo para notar que, aproximando-se o feliuz consórcio de S.M.I., necessáriamente deve aumentar o número das festividades solenes (…)" (I, op.cit. 216)
Nos diálogos e nas reflexões, salientou-se que de forma alguma o conceito de esplendor deve ser entendido no sentido superficial de brilho, de pompa a serviço de chamamento de atenção e admiração, mas sim nas suas relações com irradiação de luz em sentidos extensos e que têm a sua expressão na própria linguagem visual de representações da Divindade, evidenciada sobretudo naquelas do Espírito Santo. O termo esplendor do culto desejado por D. Pedro II diria assim respeito ao esplendor do culto divino.
A partir de 1974, a Missa em Mi Bemol foi uma das obras de Francisco Manuel da Silva consideradas no programa de estudos musicológicos desenvolvido na Europa, primeiramente no âmbito de ciclo luso-brasileiro de estudos desenvolvido em Portugal e, a seguir, a partir da Alemanha, a partir da Universidade de Colonia. O interesse despertado pela Missa e por outras obras sacro-musicais do compositor fontes explica-se pela atualidade de questões concernentes à música sacra em anos marcados pelo centenario da escola de música sacra de Ratisbona, principal centro do Cecilianismo no passado, assim como pelos 450 anos de Palestrina. Essas datas foram consideradas no contexto das então atuais preocupações relativas a desenvolvimentos decorrentes do Concílio Vaticano II, o que levou a reconsiderações criticas de correntes sacro-musicais restaurativas remetentes ao século XIX. O século XIX em contextos extra-europeus era objeto de projeto então em andamento dedicado às culturas musicais na América Latina.
O reconhecimento da necessária revisão de ideários e práticas restauracionistas do século XIX, em particular do Cecilianismo, favoreceu os intentos de uma maior diferenciação e revalorização da prática coro-orquestral na música sacra, um dos principais anelos do projeto brasileiro de desenvolvimento de uma musicologia orientada segundo processos em contextos globais. Essa revisão de perspectivas surgia como necessária, até mesmo como exigência sobretudo para estudos referentes ao patrimônio musical brasileiro, marcado que foi sobretudo pela prática coro-orquestral.
Esse intento levou também ao reconhecimento da necessidade de uma reavaliação do repertório e da prática coro-orquestral na Europa, esquecida e silenciada numa pesquisa marcada ainda pelo ideário cecilianista. Esse intento motivou pesquisas e colóquios em igrejas e cidades de diferentes países que ainda tinham mantido por mais tempo a tradição coro-orquestral nos séculos XIX e XX.
O Gloria da "Missa Grande", com os ornamentos e longas vocalizações de solos vocais, surge como uma das mais impressionantes partes da obra e um dos mais extraordinários exemplos de tratamento do Gloria no repertório brasileiro. A obra foi estudada em cotejos com o Gloria com obras de outros compositores brasileiros como Elias Álvares Lobo (1834-1901), Antonio Carlos Gomes (1836-1896) e portugueses como Marcos Antonio da Fonseca Portugal e João José Baldi (1770-1816). Essas análises comparativas disseram respeito sobretudo ao Laudamus te.
Desenvolvimentos subsequentes
A "Missa Grande" e outras obras de Francisco Manuel da Silva foram consideradas a partir das fontes levantadas no Brasil em coloquios de professores e doutorandos que levaram a defesa de tese em 1979. As reflexões e os debates partiram sobretudo da perspectiva da sua recepção em São Paulo no seculo XIX pelo significado da então provincia na sua extraordinaria expansão econômica para estudos culturais do processo restaurativo eclesiastico de reação contra desenvolvimentos secularizadores em geral.
Os estudos suscitaram e fundamentaram a realização do I. Simposio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira realizado em São Paulo em 1981, no âmbito do qual fundou-se a Sociedade Brasileira de Musicologia. Francisco Manuel da Silva foi lembrado na solenidade de fundação em concerto realizado pela Banda Sinfônica da Policia Militar de São Paulo junto ao Monumento da Independência no Ipiranga. O compositor e suas obras foram tratadas no I° Forum Alemanha-Brasil de Musica e Educação Musical em 1982 e em outras ocasiões.
Sob o aspecto dos estudos sacro-musicais de orientação culgtural, as sus obras foram consideradas em estudos e encontros na área da Etnomusicologia realizados na Instituto de Musicologia Comparada da Universidade Livre de Berlim, no Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos de Maria Laach assim como no Istituto Pontificio di Musica Sacra em Roma.
Com a fundação do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Lingua Portuguesa, em 1985, oficializando internacionalmente o Centro de Pesquisas em Musicologia formalizado em 1968 em São Paulo, as fontes então levantadas, entre elas aquelas referentes a Francisco Manuel da Silva foram reconsideradas sob a perspectiva de desenvolvimentos em contextos marcados pelos portugueses nas diferentes regiões do mundo. As obras de Francisco Manuel da Silva foram tratadas nas décadas que se seguiram em simpósios, conferências, coloquios, cursos e seminários. Um marco na consideração do compositor foi concerto realizado na catedral de Colonia por ocasião do Congresso Internacional Música e Visões de abertura das comemorações dos 500 anos do Brasil, quando o Hino Nacional e outras obras suas, entre elas partes da Missa em Mi bemol, oram recriadas em improvisações ao orgão.
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
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