BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
Jesuíno Francisco de Paula Gusmão, conhecido pelo seu nome religioso de Jesuíno do Monte Carmelo, foi uma das primeiras figuras da história da música de São Paulo do século XIX que já na primeira metade da década de 1960 despertaram interesses por estudos da música nas suas inserções contextos e processos sócio-culturais mais amplos.
Jesuíno nasceu em Santos, em 25 de março de 1764. De origem humilde, foi marcado pela religiosidade carmelita na sua formação. Desde cedo demonstrou uma aptidão à pintura, à representação de imagens da tradição católica, de santos e de contextos teológicos em época ainda marcada por uma linguagem visual da propaganda religiosa barroca. Decisiva na sua trajetória de vida foi o fato de ter sido indicado pelo superior do convento de Santos para acompanhar um carmelita a Itú, então local afastado e ermo. Ali atuou na pintura do interior da igreja, nela representando principais imagens e decorrências da tradição carmelita: os profetas Elias e Eliseu, assim como a Virgem do Carmelo no centro. A Virgem do Carmelo como foco nessa obra de Jesuíno, realizada por devoção, documenta o significado da veneração mariana, do marianismo carmelita que determinou a sua vida e obra.
O jovem, distinguindo-se pela sua modéstia e introspecção, hospedado por família local, foi escolhido como marido de Maria Francisca de Godói, casando-se em 1764. A seus filhos deu significativamente nomes carmelitas como Elias, Maria Teresa, Elias do Monte Carmelo, Eliseu e Simão Stock do Monte Carmelo. Com a morte de sua mulher, em 1793, embora sendo procurado para novas alianças, decidiu-se pela vida religiosa, o que correspondia á sua vocação e religiosidade. Passou a usar o hábito preto de algodão cingido com uma tira de couro dos carmelitas. Após o término das pinturas na igreja, veio para São Paulo para estudar latim e outras disciplinas necessárias para o sacerdócio.
Em 1797 obteve as ordens menores, passando a usar o nome religioso de Jesuíno do Monte Carmelo. Obteve a seguir as outras ordens, a da Epístola, a de Evangelhos e a da Missa. Celebrou a sua primeira missa no dia da festa do Carmo, em 1798. Pensava em criar um convento de freiras. O Pe. Manuel Ferraz de Camargo, ofereceu-lhe os meios, um engenho com escritura, assim como o terreno onde construiu-se a Igreja do Patrocínio. Vendendo o engenho, Jesuíno pôde dar início à construção da igreja, falecendo porém antes de sua consagração.
Em novembro de 1820, a inauguração da igreja de Nossa Senhora do Patrocínio foi celebrada com grande solenidade. Na trasladação de seus restos mortais, em 1822, o Pe. Diogo Antonio Feijó (1784-1843) lembrou os inúmeros peregrinos que, mesmo de longe, vinham a Itú movidos pela piedade de Jesuíno. Esse ideal pôde ser concretizado posteriormente à época do bispo D. Antonio Joaquim de Melo (1791-1861), prelado nascido em Itú, onde também celebrou a sua primeira missa. Tendo este chamado irmãs de São José para a criação de um colégio de meninas, enviou-as a Itu, onde se instalaram na igreja e dependências do Patrocínio. Essas religiosas pertenciam a uma congregação estreitamente marcada e relacionada com o movimento de restauração católica da França das décadas que se seguiram ao Congresso de Viena.
Jesuíno do Monte Carmelo desempenhou assim um papel importante no movimento religioso restaurativo de São Paulo, voltado à intensificação da religião na sociedade, de reforma do clero e da formação católica de novas gerações em reação a processos secularizantes. É nesse desenvolvimento reativo, marcado por zêlo pela religião, crítico do indiferentismo religioso, de tolerância e de desenvolvimentos liberais, que marcou nas suas diferentes vertentes o século XIX, que foi não só aquele de progressos materiais e científicos, mas também o da Restauração, que Jesuíno deve ser considerado.
Por ter ele sido considerado por Mário de Andrade (1893-1945) em publicação de 1945, Jesuíno fora durante décadas sempre lembrado em diferentes áreas de estudos. Pelas suas múltiplas atividades como artesão, pintor, músico, pelas suas origens humildes e étnicas, pela sua devoção carmelita, documentada no teto da Igreja da Ordem Terceira do Carmo, em São Paulo e pelo fato de ter sido casado, ter filhos, passando a seguir a dedicar-se plenamente à vida religiosa, construído uma igreja e reunido ao redor de si uma comunidade, Jesuíno surgiu sempre como uma personalidade singular, despertadora de interesses, levantando porém também questões que marcaram as reflexões. Passou-se a indagar a propriedade de visões e interpretações na literatura, da imagem de Jesuíno nela transmitida, aliciante sob diferentes aspectos, despertadora de simpatias pelo fato sempre lembrado de ter sido discriminado pelas suas origens.
Recordar essas reflexões dos anos de 1960 em alguns de seus aspectos é de importância para a compreensão de desenvolvimentos que se seguiram, que levaram ao reconhecimento de problemas decorrentes de modos de pensar, ver e proceder nos estudos culturais e, em particular, naqueles referentes à música.
O ocupar-se com Jesuíno contribuiu á tomada de consciência que perspectivas e procedimentos determinados por separações e categorizações de esferas e áreas nos seus múltiplos aspectos, de um modo de pensar em compartimentos nas suas implicações para os diferentes campos de estudos, para as diferentes matérias ou disciplinas deviam ser revistos. Jesuíno não podia ser considerado adequadamente em estudos da pintura ou da história da música sem que se considerasse as suas atividades múltiplas, a inserções de suas atividades artísticas num todo determinado pelas suas origens etno-sociais, pelo seu condicionamento cultural que levou à sua extremada religiosidade. Reconheceu-se que os estudos deviam ser dirigidos aos mecanismos inerentes de um sistema cultural no qual se inseriu, um intento que exigia uma atenção primordialmente voltada ao edifício de concepções, imagens e ímpetos religiosos transmitidos pela tradição no Catolicismo e, em particular, naquela da veneração mariana da tradição carmelita..
Os estudos, necessariamente inter-e mesmo transdisciplinares, deviam voltar-se à análise desses fundamentos e agentes que o marcaram psico-mentalmente, que determinaram a sua vida e o seus empenhos religiosos, quase que incompreensíveis na sua intensidade.
Os estudos culturais, dirigidos à análises desses mecanismos do sistema cultural, deviam ter a música como princípio condutor. A música, por sua vez, devia ser considerada em função do papel que desempenha no todo de de uma visão do mundo e do homem, que o condiciona culturalmente, para o qual Jesuíno se oferece como exemplo. Mais do que a pintura ou as artes plásticas nas atividades do extremamente piedoso Jesuíno, a música não é apenas expressão, representação de imagens, mas ao mesmo tempo agente. Como sempre lembrado através dos séculos, a música tem o poder de mover afetos, de agir no interior do homem, de movimentá-lo sob o aspecto imaterial, de movê-lo psico-mentalmente para baixo ou para o alto, podendo levá-lo a entusiasmos, êxtases, a ações destemidas e ímpetos irrefletidos, o que se evidencia na função da música em combates militares, mas também em transes místicos e ardores de extremada religiosidade e fanatismo. Jesuíno desempenhou neste sentido um importante papel no desenvolvimento de uma orientação da musicologia voltada à análise de processos culturais e, reciprocamente, de uma culturologia de condução musicológica, elaborada no Brasil e que determinou programa de estudos em âmbito internacional desde 1974/75.
A consideração da tradição carmelita nos estudos de Jesuíno do Monte Carmelo motivaram a realização de estudos na Ordem Carmelita e na Ordem Terceira do Carmo de São Paulo. Vários músicos e professores de música e artes de São Paulo eram marcados pela espiritualidade carmelita e mesmo membros da Ordem Terceira. Este era o caso de professores do Conservatório Musical Carlos Gomes, instituição que realizava tradicionalmente as suas solenidades de formatura na Igreja do Carmo e no qual lecionava Edgard Arantes Franco, um pesquisador de tradições religiosas que atuava como regente na Igreja da Ordem Terceira do Carmo. Nessa igreja - e no colégio adjacente - realizaram-se encontros e entrevistas com religiosos e com a responsável pela música nas celebrações. Em época marcada pelas reformas pós-conciliares, o interesse dirigiu-se sobretudo ao levantamento e ao estudo de obras que passavam a ser abandonadas, mas que tinham determinado a vida musical da irmandade por décadas.
Os estudos referentes à história dos Carmelitas em São Paulo foram desenvolvidos a partir da literatura paulístana sob a orientação de historiadores do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da Universidade de São Paulo em 1969. Considerou-se, em primeiro lugar a continuidade na memória local da figura de Jesuíno, registrada numa biografia escrita por Joaquim Leme de Oliveira César. (+1877), escritor de Itú e Sorocaba, e que passou conhecimentos a Manuel Eufrásio de Azevedo Marques (1825-1878) em meados do século XIX que, por sua vez, incluiu a biografia nos seus Apontamentos Históricos. Geográficos, Biográficos, Estatísticos e Noticiosos da Província de São Paulo. Essa obra, publicada postumamente em 1879 pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro por recomendação de D. Pedro II, e republicada sob os auspícios da Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo (1954) como primeiro volume da Biblioteca Histórica Paulista (Tomo II, 15-17), permitiu estudos mais fundamentados quanto à permanência da memória de Jesuíno através das décadas.
Por ser originário de Santos, os estudos históricos voltaram-se sobretudo ao Convento do Carmo ali fundado no dia 6 de Janeiro de 1580 e que foi concluído em 1590. Instalado primeiramente em outro local - o de Nossa Senhora da Graça - foi transferido para al por terreno doado por Braz Cubas (1507-1592) ao representante do comissário geral da Ordem, Frei Pedro Viana. O Convento de São Paulo foi fundado a seguir, em 1594 por Frei António de São Paulo, também em terras doadas por Braz Cubas. Em 1629, fundou-se o Convento do Carmo em Mogi das Cruzes a pedido da Câmara e do vigário por Frei João da Cruz e Frei Manuel Pereira.
O Convento do Carmo em Itú foi fundado ainda mais tarde, em 1719, a pedido das Câmaras de Itú e Sorocaba pelo padre comissário Frei João Batista de Jesus, com autorização de Dom João V (1689-1750). Tanto essa fundação como o fato do Convento de Santos ter sido reformado ou reconstruído em 1754 corresponderam à intensicação global da devoção carmelita na Europa em meados do século XVIII. O convento de Itú possuia grandes cabedais, engenho de açúcar e fazendas doados pelo capitão Fernandes de Abreu, filho do fundador de Sorocaba. De um relatório de 1855 sabe-se que o convento de Itu possuía um edifício na cidade de São Paulo e em Capivari, entre outros.
Em janeiro de 1974, os estudos dos processos restaurativos no século XIX conduzidos em São Paulo foram tratados no primeiro ciclo de estudos culturais e musicológicos luso-brasileiro desenvolvido em Portugal. Nesses estudos, consideraram-se paralelos entre Itú como principal centro dessas tendências reativas à secularização em São Paulo com o reacionarismo religioso português, representado pelo Colégio São Fiel dos Jesuítas, significativamente edificado em região isolada da Beira. Esses estudos do movimento restaurativo eclesiástico tiveram prosseguimento em Colonia, importante centro do Catolicismo e dos estudos eclesiásticos da Alemanha.
O projeto de cooperações internacionais para o desenvolvimento de uma musicologia de orientação científico-cultural, sendo fundamentalmente interdisciplinar, foi desenvolvido em diálogos com pesquisadores de História da Arte e da Arquitetura, da Etnologia Européia (Völkerkunde), da Musicologia Histórica e da Etnomusicologia, assim como de Estudos Portugueses e Brasileiros dos respectivos institutos da Universidade de Colonia. O reconhecimento da necessidade de estudos mais aprofundados da história eclesiástica e de tradições populares religiosas levou a estudos de fontes em instituições da Arquidiocese de Colonia e de ordens religiosas. Em particular o Carmelo de Colonia foi de relevância para o desenvolvimento dos estudos carmelitas.
Tornou-se em princípio necessário recordar, que, nos seus primórdios, as concepções são marcadas pela vida de isolamento eremita no monte da Terra Santa denominado de Carmelo. Essas montanhas, com as suas numerosas grutas e suas fendas, proporcionou desde remotos séculos abrigo àqueles que procuravam uma vida contemplativa em distância ao mundo e isolamento. Na narrativa bíblica, para ali se retiraram o profeta Elias e o seu discípulo Eliseu. Os ermitãos, numerosos nos primeiros séculos da era cristã, uniram-se na Idade Média (ca. 1209) em uma comunidade ordenada por regras, dando origem a conventos carmelitas regularmente constituídos, que acolheram religiosos vindos da Europa à Terra Santa. Essas comunidades passaram a ser pressionadas pelos muçulmanos em expansão, o que levou a que religiosos europeus retornassem a seus países de origem. Esse retorno teria sido a causa da difusão da Ordem nas regiões mediterrâneas do sul da Europa, à Espanha e à Aquitânia.
Com a destruição do convento no monte Carmelo e assassínio de religiosos, a história da Ordem passou a se processar a partir de países europeus. Entre os monges retornados, estariam também aqueles provenientes das ilhas britânicas. Um ermitão de nome Simão, que segundo a narrativa hagiográfica desde tenra idade tinha vivido em tronco ôco de uma árvore . daí o seu cognome „stock“ - agregou-se a esses religiosos vindos da Terra Santa e que eram marcados por uma profunda devoção mariana, Realizando estudos em Oxford, obteve o doutorado, retornou ao convento e, em 1246,sendo eleito em idade avançada a Superior Geral da Ordem em Aylesford, Londres. Nesse cargo, teve de enfrentar grandes dificuldades e pressões, uma vez que a Ordem não era bem considerada na Igreja em época marcada por um surgimento quase que incontrolável de ordens e irmandades.
No dia 16 de Julho de 1251, a estória conta que Simão vivenciou um aparecimento de Maria, que lhe entregou o escapulário que seria elemento fundamental para a vida carmelita, desempenhando também um papel relevante na sua expansão em toda a Europa. No seu afã de difusão da Ordem, Simão realizou grandes viagens, falecendo em Bordeaux. A festa de Nossa Sra. do Carmo no dia 16 de julho, que marcou através dos séculos a vida da Ordem e de muitas localidades e regiões, já era celebrada no século XIV, como documentado em fonte inglesa de 1386.
A Ordem Carmelita foi reconhecida no seu significado de baluarte contra tendências da reforma religiosa. Em época da Contra-Reforma e da expansão católica em países extra-europeus, a Congregação dos Ritos permitiu, em 1595, que a festa de 16 de julho também fosse celebrada fora do âmbito da Ordem. Deve-se lembrar que foi nessa época que o convento de Santos foi fundado. No século XVIII, a devoção, já amplamente difundida, foi introduzida oficialmente para todo o mundo católico pelo Papa Bento XIII (1724-1730), de renome na história eclesiástica pela sua piedade e ações contra tendências do indifeerentismo religioso e do Esclarecimento.. Em época na qual o Reino de Nápoles/Duas Sicilias encontrava-se em estreitas relações político-culturais com a Espanha e Portugal, compreende-se ter sido essa decisão de importância para a história carmelita em Portugal no século XVIII.
Uma atenção especial deve ser dada nos estudos culturais sob o aspecto da Etnologia Religiosa Européia ao escapulário. O escapulário é um objeto de grande significado religioso para a piedade carmelitana, uma de suas características emblemáticas. É parte do hábito da Ordem e mesmo denominação popular da festa do dia 16 de Julho. O escapulário marrom lembra que este foi entregue por Maria a Simão Stock, anunciando que todos aqueles que o portassem estariam sob o seu especial patrocínio. Em igrejas européias, em especial em regiões que foram alvo de recatolizações em oposição a correntes protestantes no século XVIII, encontram-se representações em pinturas de tetos de igreja da entrega do escapulário por Maria a Simão St. Esse mesmo motivo, encontrado, por exemplo, em pintura de Joseph Anton Schupp (1664-1729) na igreja de romaria mariana em Triberg, na Floresta Negra, é aquele elaborado por Jesuíno para a igreja da Ordem Terceira do Carmo em São Paulo.
Não só os membros da Ordem, mas também aqueles religiosos de outras congregações e mesmo leigos podem usar um escapulário quando entregue por um sacerdote. Várias irmandades do escapulário surgiram no século XVIII na Alemanha e em outros países, e é nesse contexto que os empenhos de Jesuíno e os "padres do Patrocínio" devem ser considerados.
O escapulário desses devotos, menor do que aqueles da Ordem, é usado em geral sob as vestes. Devotos que, mesmo não pertencendo à Ordem dos Carmelitas, o usam sob as vestes, passam a constituir uma comunidade. Até mesmo Papas usam o escapulário de Nossa Senhora do Monte Carmelo. O escapulário é visto como que um manto ou uma veste protetora que envolve o devoto e que dá-lhe confiança como prometido por Maria quando o concedeu a Simon Stock. As suas almas serão tiradas do Purgatório no primeiro sábado após o falecimento. Para isso, porém, devem rezar diariamente o rosário, conduzir uma vida em castidade e abster-se de carne às quartas- e sextas feiras, assim como no sábado.
A devoção carmelita em Itú foi marcado pela comunidade da Igreja de Nossa Senhora do Patrocínio, fundada por Jesuíno, que também agregava sacerdotes seculares além de religiosos de outras ordens e leigos. É assim necessário estudar as comunidades que, sem pertencer à Ordem, foram marcadas pela sua espiritualidade e pelo uso do escapulário.
A intensidade da espiritualidade carmelita em Itú desde o início do século XIX expressa-se não só no seu nome de Monte Carmelo, como também no de seus companheiros, um deles de nome Simão Stock - relembrando um superior geral da Ordem na Idade Média -, no de seus filhos e na presença de nomes como Elias, que é aquele de Elias Álvares Lobo (1834-1901), um dos mais relevantes compositores de música sacra de São Paulo do século XIX.
As irmandades de religiosos de outras ordens ou leigos que trazem o pequeno escapulário, sentem-se sob o patrocínio de Maria. É ela a Nossa Senhora do Patrocínio e os religiosos que a veneram são os padres do Patrocínio
No século XVIII, no contexto de tendências esclarecedoras e secularizações, o que levou de forma mais evidente à expulsão de jesuítas, também os carmelitas sofreram pressões e coibições. O movimento restaurador do século XIX - o século da Restauração - levou a um novo recrudescimento da devoção ao Carmo e assim também às comunidades que trazem o escapulário. Essa revitalização mariana foi não só conservadora, mas em muitos sentidos reacionária, uma vez que procurou reestabelecer situações anteriores ao movimento que pôs em risco a antiga ordem política, político-cultural e religiosa e que tinha levado à revolução. Baseou-se sobretudo em formas devocionais e concepções da tradição popular. Esse recrudescimento no decorrer século XIX foi marcado pelo aparecimento de Nossa Senhora do Carmo na cidade de Accaquafonda no dia de sua festa, 16 de julho de 1841.
O escapulário marrom tornou-se tradição, assumindo um significado relevante para a religiosidade popular, sendo objeto de atenção de estudiosos de tradições, havendo coleções de escapulários conservados em museus de etnografia e regionais em cidades de vários países. Sob o ponto de vista dos estudos culturais dirigidos a processos, deve-se constatar que o escapulário é emblema de uma prática de veneração mariana que, pela sua tradicionalidade, esteve a serviço de movimentos contra-reformistas, recatolizadores, de combate a processos esclarecedores e restauradores em diferentes épocas. Marcou práticas, mentalidades, e disposições psíquicas que possibilitaram que Itu se transformasse no principal centro da restauração religiosa com a fundação do colégio dos Jesuítas.
O modelo dessa forma de vida em oferecimento penitente é Maria por ter sido com apenas três anos entregue ao templo pelos seus pais Ana e Joaquim, o que é rememorado na festa Praesentatio Beatae Mariae Virginis em novembro, em geral no dia 16 de novembro ou no período que vai do 31 de outubro a 16 de novembro. Essa presentação ou entrega de Maria para a sua consagração ao Templo é também conhecida como Festa de Maria de Jerusalém ou do Sacrifício de Maria. Essa festa é de remotas origens, sendo a primeira menção documental de 1166, ou seja, anterior à visão de Stock. Esta se justificaria como esforço de manter a continuidade da Ordem dos Carmelitas quando esta se transferiu da Palestina para a Europa, modificando a sua forma de vida eremita para uma urbana, dedicada à cura de leigos e como ordem medicante. Simão representaria a transição entre essas duas formas de vida e de ação. A comunidade se via em relação com Elias.
A espiritualidade carmelita marcou o condicionamento cultural de personalidades nascidas ou formadas em Itú. Entre elas, distinguiu-se Antonio Joaquim de Melo que, como bispo de São Paulo, tornou-se um dos principais promotores do movimento entendido como reformador no sentido restaurativo do Catolicismo do século XIX. A sua vida e ações foram objeto de estudos e diálogos dedicados à história do clero em na Biblioteca da Arquidiocese de Colonia. Nascido em 1701 em Itu, filho do capitão de exército Teobaldo de Melo César, foi batizado na matriz de Nossa Senhora da Candelária. A sua formação foi não apenas profundamente marcada pela religião, como também pela sua educação militar. Acompanhou o pai a Minas Gerais, passando a sua infância em quartel, abandonou a carreira militar em 1810, retornando a Itu. Com a intenção de vir a ser sacerdote, transferiu-se para São Paulo para completar a sua formação.
Ao lado de matérias da tradição do Triduum das Artes liberales, gramática latina e retórica, estudou dogmática e doutrina moral, necessárias para a formação sacerdotal, assim como francês. Esse idioma surgia como necessário perante o significado do processo restaurativo na França com o retorno dos Bourbons na esfera religiosa e eclesiástica, o que marcaria as suas ações. Foi sagrado sacerdote em 1814, celebrando a sua prinmeira missa em Itu.
A sua vocação foi sobretudo de cunho educativo. Em escola por ele fundada, dedicou-se ao ensino de jovens de zonas rurais. Em Itú, atuou sobretudo como confessor e pregador. Em 1849 tornou-se vigário de Itú e, em 1851, foi nomeado bispo da diocese de São Paulo, nomeação confirmada por breve papel de Pius IX (1792-1878), um dos mais tradicionalistas dos pontífices do século XIX. A sua entrada na Sé de São Paulo deu-se em cerimônia solene em 1851. Conhecido como ultra-conservador, severo reformador do clero, de costumes e da moral, causou tensões entre os cônegos e fiéis, assim como em círculos de estudantes e aqueles mais progressistas da população. Já de início dedicou-se à reforma do clero com um regulamento de conduto para sacerdotes e aspirantes ao sacerdócio.
Convicto do significado de uma formação feminina segundo princípios de piedade religiosa e de moralidade, Dom Antonio Joaquim de Melo fez vir religiosas da Congregação de São José de Chambéry, na Savoia, com a incumbência de dirigir um Itú um estabelecimento de ensino para moças. Essa Congregação era uma das instituições religiosas femininas mais militantes da época da Restauração francesa. Fundada em 1650 pelo jesuíta Jean Pierre Médaille (1610-1669) em Le Puy-en Velay, passando as religiosas a atividades de auxílio a necessitados na época que se seguiu à Guerra dos 30 anos. No decorrer da Revolução Francesa, Congregação foi proibida. Cinco religiosas, que não quiseram abandonar os conventos, foram executadas. Em 1808, a comunidade foi reestabelecida por uma religiosa que havia sobrevivido à Revolução. Em 1812, algumas religiosas foram transferidas de Lyon a Chambéry, na Savoia. A partir dessa cidade, foram organizadas novas fundações, em Turim e Pignerole no Piemonte e, a seguir, em Annecy, Gap, Bourg e Bordeaux, entre outras. Em 1843, criaram-se mais de 80 casas. Em 1874, a regra, reformada, recebeu aprovação pontifícia de Pius IX.
As religiosas chamadas pelo bispo de São Paulo, foram dirigidas a Itú, a cidade do seu nascimento. Ali, instalaram-se na igreja construída por Jesuíno e suas dependências, criando o Colégio de Nossa Senhora do Patrocínio para a educação feminina. Um ideal que já teria sido visualizado por Jesuíno tornou-se assim realidade. O ensino nesse educandário inseriu-se nos desenvolvimentos religiosos e educativos franceses e segundo moldes franceses.
O artigo „O jesuita-mulher“ no periódico caricaturista Cabrião (22 de outubro de 1866, 27) documenta o risco obscurantista do movimento restaurador eclesiástico em São Paulo reconhecido pelos estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo, criticando em particular as religiosas de São José, vistas como instrumentos da ação jesuítica:
„A caridade, a misericordia, a compaixão e o amor dos pobres, dos enfermos, dos encarcerados, são outras tantas vestes hypocritas com que procuram esconder aos olhos do povo a crosta escamoza de seu dorso de serpente. Não satisfeitos de dominar os credulos por meio do confissionario e dos seminarios, lembraram-se de trabalhar na obra da transformação social, debaixo de um aspecto insuspeito, attrahente, sympathico e fascinador, pondo a seu serviço as Irmãs de caridade, as Irmãs de S. José e quejandas, preparando-as previamente como doceis instrumentos de suas tenebrozas doutrinas, e subordinando á ordem central do jesuitismo, essas ordens femininas. (…) Onde quer que haja seis ou sete Irmãs, isto é, seis ou sete vazos de castidade condensada, ha sempre um lazarista que as vigia, que as prende como se fôra um elo á ordem central do jesuitismo, e as conduz pela mão no caminho da grande obra, exercendo ao mesmo tempo ao pé dellas, o encargo de capellão, confessor, conselheiro, etc.etc. (…) Fundam assim collegios de meninas, e de debaixo deste aspecto são denominadas pelos credulos e pelos especuladores - machinas de fazer mães de familia. /Machinas de fazer mulheres-authomatos, sei eu que ellas são." (Cabrião, loc.cit.)
Composições de Jesuíno eram conhecidas de músicos de São Paulo como Andrelino Vieira, proveniente de Santana do Parnaíba. No seu intento de coletar e procurar a verdadeira versão do canto da Verônica - o primeiro pesquisador que se dedicou ao tema sistematicamente - salientava aquele atribuído a Jesuíno. O Canto da Verônica de Manoel Gomes, o pai de Carlos Gomes (1836-1896), seria dele derivado e então difundido pelo interior do Estado. A difusão do Canto de Verônica de Jesuíno em outras cidades do interior de São Paulo por meio de outros músicos, entre eles Benedito de Morais, foi constatado no decorrer dos estudos. O primeiro trabalho de pesquisa acadêmico de cantos de Verônica foi posteriormente realizado na área de Etnomusicologia do Instituto Musical de São Paulo por Dirce Santiago Albernaz, em 1973. Composições de Jesuíno puderam ser consultadas no acervo do Seminário Menor de Pirapora do Bom Jesus.
Os elos entre Manoel Gomes, proveniente de Santana do Parnaíba e Jesuíno lembrados por Andrelino Vieira suscitaram reflexões sobre uma religiosidade marcada pela devoção carmelita do pai de Carlos Gomes, compreensível pela sua atuação na Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Campinas e. consequentemente, a reflexões referentes ao condicionamento cultural de Antonio Carlos Gomes. O emprêgo por Manoel Gomes do hino Sacris solemniis de Jesuíno documentado em manuscrito, corrobora essas relações com o carmelitanismo de Itú. O hino eucarístico medieval, em muitos casos tratado como hino ao pregador, surge aqui nos seus sentidos de adoração do Santíssimo Sacramento, da presença divina na hóstia consagrada, própria da época de sua criação, que foi aquela da introdução da festa de Corpus Christi. Essa obra traz à consciência o significado de concepções sacramentais em estudos imagológicos, particularmente relevantes na consideração de um compositor que foi também pintor.
Os estudos de Jesuíno desenvolvidos sob o aspecto de uma musicologia orientada segundo processos culturais revelaram contextos que não podem deixar de ser considerados na pesquisa de sua produção sacro-musical. As análises de suas obras não podem restringir-se a estudos da linguagem musical, estilísticos ou formais. Elas exigem a consideração de sua religiosidade carmelita nas suas expressões, funções e efeitos. As suas consequências sócio-psicológicas e em processos que marcaram a história cultural e mesmo político-cultural de Itú necessitam ser consideradas para a consideração adequada de sua produção musical.
O posicionamento do pesquisador determina perspectivas e atribuições de valor. Para aqueles de orientação progressista, Jesuíno apresenta-se como uma figura problemática, os processos em que se inseriu e que fomentou fundamentalmente reativos, contrário a correntes do Esclarecimento e a posições liberais e de tolerância, sombrios. Visões e interpretações encomiásticas, generalizadas desde o estudo de Mário de Andrade, passam a ser questionadas.
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
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