BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
João Gomes de Araújo foi um dos compositores considerados com mais atenção em estudos iniciados em São Paulo em meados da década de 1960. Tinha sido uma das personalidades mais relevantes da vida musical de São Paulo, professor de gerações de musicistas, compositor de renome, por muitos comparado com Antonio Carlos Gomes (1834-1896), seu contemporâneo, cuja memória mantinha-se viva, cultivada pelos seus descendentes.
Os estudos de fontes conduzidos no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, onde lecionara durante décadas, assim como em instituições com quem esteve estreitamente vinculado, como o Conservatório Musical Carlos Gomes - antiga Sociedade Benedetto Marcello - e o Instituto Musical de São Paulo permitiram, ao lado de informações obtidas em entrevistas, desenvolver e pesquisa de sua vida e obra em profundidade pouco alcançada relativamente a outros vultos da história da música de São Paulo. Esses estudos foram complementados com levantamento de fontes e entrevistas em Pindamonhangaba, cidade de seu nascimento, assim como em outras cidades do vale do Paraíba. Essas fontes e estudos foram tratadas em programa musicológico elaborado em São Paulo e conduzido em cooperações internacionais na Europa a partir de 1974.
Professores vinculados com o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo não podiam deixar de considerar a história da instituição sem a lembrança de João Gomes de Araújo. A sua memória era cultivada sobretudo pela sua filha, Estefania Gomes de Araújo, autora de um livro no qual registrou a vida de seu pai. Foi Estefania Gomes de Araújo que possibilitou o conhecimento do acervo de seu pai e a obtenção de manuscritos e obras impressas que serviram de base para estudos que se seguiram.
Ao lado de Estefania Gomes de Araújo destacaram-se nos estudos de João Gomes de Araújo professores de História da Música de São Paulo, entre eles Antonio Caldeira Filho e Alonso Aníbal da Fonseca. Em encontros no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo Musical e no Conservatório Paulista de Canto Orfeônico, onde se conservava documentos de João Gomes Júnior (1868-1963), os conhecimentos puderam ser ampliados. João Gomes de Araújo tinha sido inspetor estadual da sociedade Benedetto Marcello, posteriormente Conservatório Musical Carlos Gomes.
Os estudos de J. Gomes de Araújo foram desenvolvidos no Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão (1968) e tratados em cursos de história da música paulista desenvolvidos na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da Universidade de São Paulo, assim como no Conservatório Musical do Jardim América, sede da Nova Difusão.
Entre as fontes levantadas em pesquisas em Pindamonhangaba, salientou-se um Solo ao Pregador composto quando jovem em meados do século XIX. Essa obra passou a ser considerada com especial atenção nos estudos de sua produção musical .João Gomes de Araújo foi considerado em cursos de Música na Evolução Urbana de São Paulo e de História da Música em nível de pós graduação na Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo, onde o seu nome e o de seu filho João Gomes Júnior mantinham-se sempre vivs. Contatos com Salesianos em São Paulo possibilitaram estudos da atuação de Gomes de Araújo no Liceu Sagrado Coração de Jesus dirigido pelos religiosos de Dom Bosco assim como de suas colaborações à revista Ave Maria.
Esses estudos, sendo desenvolvidos no âmbito do movimento Nova Difusão, foram marcados por uma orientação dirigida à inserção de João Gomes de Araújo em processos em contextos internacionais, em particular ítalo-brasileiros. Tendo realizado estudos na Itália, as suas concepções, visões, métodos e sua produção musical eram marcadas por essas relações, o que também explica a intensidade de seus elos com meios musicais da imigração italiana em São Paulo.
O movimento Nova Difusão tinha como objetivo contribuir a una abertura de perspectivas nos estudos culturais e musicais através de um direcionamento da atenção a processos que superam fronteiras e delimitações em diferentes sentidos. Esse escopo favorecia o reconhecimento de valores em compositores que não correspondiam aos ideários do nacionalismo musical que predominaram desde a década de 1920, entre eles João Gomes de Araújo. O empenho em rever visões históricas que desqualificavam grande parte do passado brasileiro anterior à Semana de Arte Moderna de 1922 favoreceu o interesse pela obra de João Gomes de Araújo.
A sua formação musical inseriu-se na tradição paterna que, ao lado de suas atividades profissionais, atuou como mestre-de-capela da matriz de Pindamonhangaba. Revelando desde cedo talento musical, João Gomes foi enviado ao Rio de Janeiro, onde realizou estudos no Imperial Conservatório de Música, sendo aluno de Francisco Manuel da Silva (1795-1865), Gioacchino Giannini (1817-1860) e Demétrio Rivera. Em 1863, voltou ao vale do Paraíba, onde fundou um conservatório de música e organizou uma orquestra. Foi mestre de capela da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso de Pindamonhangaba entre 1872 a 1884. Dessa época data o seu Solo ao Pregador, datado de 1879, um Ave Maria que representa um marco na sua produção sacro-musical, marcada pelo seu marianismo, assim como a Missa Nossa Senhora do Bom Sucesso (1882) e a Missa São Benedito (1884). Esta obra, composta para a consagração da igreja de São Benedito, a primeira na sua grandiosidade dedicada a esse santo venerado sobretudo por africanos e seus descendentes, pode ser considerada como um marco de processos sócio-culturais da maior relevância da época do pontificado de Leão XIII (1810-1903) e que explica o interesse que há muito vem recebendo nos estudos paulistas desenvolvidos também em centros europeus.
Em 1884, com o apoio de D. Pedro II, partiu para a Itália com a finalidade de desenvolver estudos em Milão, onde já vivia Carlos Gomes. Foi assim um dos vários músicos que puderam contar com o patrocínio do Imperador. A sua ópera Edmeia data dessa época, Já neste ano, porém, retornou ao Brasil, fixando-se em São Paulo.
Em 1888, João Gomes de Araújoconseguiu estrear na Itália a sua ópera Carmosina, em cuja ocasião esteve presente a família imperial brasileira. Foi a época na qual o Papa Leão XIII publicou a encíclica na qual promovia a veneração mariana do Rosário e a ele dedicava o mês de outubro, um pronunciamento que teve grande repercussão no Brasil, com consequências que não podem ser subestimadas quando se considera a Abolição e a lei assinada pela princesa Isabel, marcada que foi por profunda religiosidade e obediência à autoridade eclesiástica.
Com o advento da República, projetos que teriam contado com o apoio de D. Pedro II faliram e o compositor transferiu-se para São Paulo, cidade que se encontrava em extraordinário processos de transformação e expansão. A continuidade na sua vida e obra fundamentou-se sobretudo no seu catolicismo e que se manifestou nas sua obra. Vivenciou as medidas de reforma católica no século XIX que levou à transformação da estrutura e da prática da música nas igrejas, das décadas que sucederam ao Concílio Vaticano I. A época do pontificado de Leão XIII, o papa dos trabalhadores, aquele que entrou na história comn a encíclica social Rerum Novarum, foi aquela que mais marcou o seu pensamento e sua condução de vida. Embora obedecendo a seguir os preceitos do Motu Proprio de Pius X de 1903, a sua vida e atuações permaneceram marcadas pelos ensinamentos de Leão XIII.
A sua proximidade aos religiosos de Dom Bosco tanto no vale do Paraíba como em São Paulo correspondem a um espírito da época do pontificado de Leão XIII. O movimento salesiano, iniciado na Itália e vinculado com a imigração italiana no Brasil, marcou a sua orientação religiosa e a sua obra. Esses elos relacionam-se com os desenvolvimentos político-culturais da época de consolidação do Reino da Itália e da industrialização com os seus problemas econômico e sociais. Nessa sua inserção na cultura salesiano, as suas concepções e ações religiosas passaram a voltar-se à formação da juventude desfavorecida de classes trabalhadoras. A sua proximidade aos Salesianos do Liceu Sagrado Coração de Jesus em São Paulo explica-se nesse contexto epocal nas suas relações supra-nacionais.
João Gomes de Araújo foi considerado já de início do projeto musicológico iniciado em 1974 e que teve como objeto contribuir ao desenvolvimento de uma musicologia voltada à análise de processos culturais em contextos globais e, concomitantemente a estudos culturais a partir da música como princípio condutor. Já nos primeiros encontros no Instituto de Musicologia de Colonia, João Gomes de Araújo foi lembrado ao lado de Francisco Manuel da Silva, do qual foi aluno, assim como com músicos mais próximos de sua geração como os paulistas Antonio Carlos Gomes e Elias Álvares Lobo (1834-1901).
Os paralelos e afinidades, mas também as diferenças na trajetória de vida e nas obras desses compositores marcaram as aproximações. Foram próximos quanto às suas inserções em contextos epocais e em redes sociais inter-relacionadas e sobretudo pelo fato de terem sido formados na prática sacro-musical de coros e orquestras de igrejas. Todos tinham sido marcados pelo fascínio da ópera italiana e, como Carlos Gomes e Elias Lobo, também João Gomes de Araújo dirigiu-se ao Rio de Janeiro para aprofundar os seus conhecimentos e alcançar os primeiros sucessos movidos pelo desejo de prosseguimento de estudos nos centros musicais europeus, especialmente em Milão.
Se Carlos Gomes alcançou sucesso na Itália, onde integrou-se, assim como sucessos internacionais, Elias Lobo, apesar do sucesso de sua ópera A Noite de São João, retornou à província, dedicando-se sobretudo à música sacra e ao ensino, inserindo-se ativamente no processo de reforma restaurativa eclesiástica. João Gomes de Araújo realizou também estudos no Rio de Janeiro, retornou á sua cidade, dirigiu-se a Itália onde desenvolveu estudos e procurou fazer carreira e, retornando, fixou-se em São Paulo.
João Gomes de Araújo foi um dos compositores tratados no âmbito da preparação de uma obra sobre as culturas musicais na América Latina no século XIX, então em andamento. Esse volume, no qual tomavam parte pesquisadores de vários países latino-americanos, inseria-se em projeto editorial de amplas dimensões, no qual a música no século XIX em várias regiões do globo era tratada. Esse intento correspondeu à tomada de consciência da necessidade de reconsiderações desse século na pesquisa, em particular também naquela de regiões extra-européias, o que exigia procedimentos interdisciplinares, histórico-musicais e etnomusicológicos.
João Gomes de Araújo foi lembrado em diálogos e encontros como uma personalidade que, pela sua longa vida, oferecia-se para a consideração de continuidades transepocais. Pela sua formação, tendo estudado, atuado na Europa e pela sua linguagem musical e suas concepções, exigia perspectivas mais amplas do que aquelas delimitadas por fronteiras regionais, nacionais e continentais.
A situação paradoxal representada pela permanências em programas de concertos e no ensino musical do século XX e, ao mesmo tempo, pelo esquecimento de nomes, obras e correntes do século XIX na pesquisa foi tema de debates ne Jornadas Musicais realizadas em Kassel, em 1976 (Kasseler Musiktage). João Gomes de Araújo, sobrevivendo a Carlos Gomes e a outros dos mais representativos vultos da música no Brasil no século XIX personificou como poucos continuidades e e interrupções em desenvolvimentos. Como considerado por alguns pesquisadores, foi um compositor que ultrapassou a sua própria época, que transpôs delimitações características de um pensamento historiográfico marcado por intentos de definições de períodos e fases, tendo sido visto por alguns como um representante vivo de um passado já remoto. Seria injusto e inadequado porém desqualificá-lo por não corresponder a ideários que projetavam no passado concepções e convicções político- e sócio-culturais do presente das décadas de 20, 30 e 40 do século XX.
O interesse despertado por João Gomes de Araújo em círculos de pesquisadores em Colonia decorreu sobretudo da atualidade de questões concernentes à música sacra. A realização de estudos pelos 450 anos de Palestrina em 1975, já planejada no projeto brasileiro em 1974, e as sempre presentes preocupações quanto a perda de repertórios decorrentes de mudanças na prática sacro-musical decorrentes do Concílio Vaticano II, fomentaram a discussão sobre revisões de concepções e normas do período pré-conciliar e que revelavam continuidades de movimentos de restauração sacro-musical do século XIX. Já em março de 1975 realizou-se uma viagem de estudos a Roma para estudos na Biblioteca Apostólica Vaticana.
João Gomes de Araújo, na sua longa vida, nascido na primeira metade do século XIX, vivenciou principais épocas e correntes da história eclesiástica do século da Restauração e de suas repercussões no Brasil. A sua formação e juventude decorreu em grande parte sob o pontificado de Pius IX, do ano de seu nascimento 1846 a 1878. Foi época marcada pelo intenso marianismo que levou á dogmatização da Imaculada Conceição de Maria e foi a época da extraordinária intensificação da veneração de Nossa Senhora da Conceição no vale do Paraíba, manifestada no crescente significado de Aparecida como centro de peregrinações. Esse extremado marianismo marcou a mentalidade e a produção musical de João Gomes de Araújo, sendo o seu Solo ao Pregador com texto do Ave Maria - e não do Sacris solemniis -uma de suas expressões. A sua formação na época de Pius IX, a da declaração da infabilidade papal, pode ser também vista como explicativa da sua absoluta obediência à autoridade eclesiástica, às suas normas e seus pronunciamentos.
Nos anos posteriores, à época em que passou a dirigir a música sacra na igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso em Pindamonhangaba, João Gomes de Araújo vivenciou o longo período do pontificado de Leão XIII (1878-1903). É nessa época que foi sensibilizado para injustiças sociais, para a vida de trabalhadores, dos menos privilegiados, o que se expressa na sua Missa a São Benedito nos anos que precederam a Abolição e a sua aproximação aos religiosos de Dom Bosco.
As décadas do século XX vivenciadas por João Gomes de Araújo já em fase adiantada de sua trajetória foram aquelas que tiveram como principal marco o Motu Proprio de Pio X. Nele encontram-se as diretrizes que marcaram a atuação e as atividades de ensino de João Gomes de Araújo, entre elas como professor do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Apesar de fundamental concordância quanto a concepções e ideais, a sua formação diferenciava-se daquela da tradição cecilianista e dos religiosos ultramontanos alemães, havendo antes afinidades com a de Furio Franceschini (1880-1976). Era porém, já pela idade, antes um homem da época de Leão XIII.
João Gomes de Araújo foi considerado em colóquios de professores e doutorandos que levou a defesa de tese sobre a música sacra em São Paulo no século XIX, trabalho que motivou e forneceu as bases para a realização do I Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira, no âmbito do qual fundou-se a Sociedade Brasileira de Musicologia (SBM) em 1981. Em 1982, foi considerado no I Fórum de Música Alemanha/Brasil na Alemanha, primeiro evento da SBM na Europa.
João Gomes de Araújo, passou a ser tratado a partir de 1985 no âmbito dos trabalhos do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS), instituição que representou a internacionalização do Centro de Pesquisas em Musicologia fundado em São Paulo. A sua obra secular, entre elas sobretudo a sua ópera Maria Petrowna, foi considerada em 1986, ano rememorativo dos 100 anos de falecimento de Carlos Gomes. João Gomes de Araújo foi tratado em cursos universitários, entre eles no ciclo dedicado ao tema Música no Encontro de Culturas na Universidade de Colonia, a partir de 1987, sendo a ele dedicada uma das sessões do ciclo de aulas sobre o Classico e o Romântico na História da Música realizado no auditório máximo da Universidade de Bonn em 2004.
"Ah! As ninfas cantam!" Focas e ninfas do Golfo de Nápoles e sereias de Santos na formação das jovens paulistas no exemplo de La Ninfa ➢
Aproximações ao edifício de imagens condutoras do canto coral feminino a partir de obras de João Gomes de Araújo (1846-1943) (III) ➢
A tarantella napolitana e o adeus à Itália em Maria Petrowna ➢
Restauração católica e Belle Époque ➢
Nápoles, Lucca, Brasil ➢
Cantai hinos. Às Aves. Aproximações ao edifício de imagens condutoras do canto coral feminino a partir de obras de João Gomes de Araújo (1846-1943) (IV) ➢
Italianità, Deutschtum e Paulistanidade no centenário de Carlos Gomes em 1936. O festival do Instituto Musical de São Paulo no Club Germania ➢
A Villa Kyrial e a Trialogia da Noite. Aproximações ao edifício de imagens condutoras do canto coral feminino a partir de obras de João Gomes de Araújo (1846-1943) (II) ➢
Lucchesi no mundo e Estudos Puccinianos ➢ Gioacchino Giannini (1817-1860) e a tradição teórica e musical de Lucca ➢
Ensino musical e difusão cultural em processos sociais de entre-guerras. A Instrucção Artistica do Brasil ➢
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
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