BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
Em 2025, ano marcado pelo bicentenário de Dom Pedro II. (1825-1891), as atenções se voltam a estudos científicos, culturais, artísticos e musicais do século XIX, que foram por ele tão promovidos e apoiados. Contribuindo a esses estudos, alguns aspectos de pesquisas e iniciativas realizadas no Brasil desde a década de 1960 devem ser recapitulados. Trabalhos então realizados tiveram continuidade em âmbito universitário na Europa desde 1974, foram tratados em colóquios, conferências, cursos e seminários universitários. Neles, considerou-se o Brasil nas suas relações com a Europa, emprestando-se particular atenção à música. Tanto o papel desempenhado pela música em processos culturais no Brasil como o de compositores brasileiros e suas obras na Europa foi objeto de análises e reflexões.
José Mariano da Costa Lobo nasceu e se formou em meio familiar e sócio-cultural marcado pela música, em particular pela música de igreja na cidade de Itú. Foi filho de Joaquim Mariano da Costa, convivendo com músicos e compositores seus familiares Elias Álvares Lobo (1834-1901) e Tristão Mariano da Costa (1846-1908), personalidades de significado e influência na música sacra de São Paulo do século XIX. Deles recebeu ensinamentos, formando-se na prática sacro-musical em Itú, principal centro do pensamento restaurativo católico da Província, cidade na qual teria lugar o primeiro congresso republicano do Brasil.
Recebeu ensinamentos de seus tios, socializando-se e formando-se na vida musical de coros de igreja, da música de culto, de celebrações paralitúrgicas e atos devocionais. Cresceu em ambiente familiar marcado pela religião e pelo cultivo da música, onde aprendeu piano, tomando conhecimento do repertório doméstico e de salão, de reduções de óperas e danças estilizadas, com ou sem a participação de outros instrumentistas. Começou desde cedo a compor, sendo quando jovem reconhecido pelo seu talento. Foi por dez anos regente e responsável pela música sacra na matriz de Nossa Senhora da Candelária de Itú.
Formado em época marcada pelas reformas restaurativas cujo marco foi o Concílio Vaticano I (1870), viveu e atuou sob o pontificado de Leão XIII (1810-1903), o Papa que entrou na história pela sua atenção aos trabalhadores e como promotor do culto mariano, em particular do Rosário. José Mariano compôs obras para a Semana Santa, entre elas motetos para a procissão dos Passos. Vivenciou a gradativa substituição da prática coral com acompanhamento orquestral por aquela de órgão. Com a aquisição de um órgão Cavaille-Coll para na matriz Nossa Senhora da Candelária de Itú, foi ele que o inaugurou.
José Mariano da Costa Lobo é um músico que merece ser lembrado em estudos do século XIX referentes ao Brasil no século XIX. A sua vida decorre nas últimas décadas do século, tendo cedo falecido poucos anos após o golpe de 1889 e a morte de Dom Pedro II em 1891. Embora não tenha podido desenvolver a sua obra à altura das expectativas que despertara, adquire significado por representar a geração que se seguiu àquela de Elias Álvares Lobo e Tristão Mariano da Costa. Vivenciou época marcadas pela intensificação da veneração mariana na segunda metade do século XIX, cujo principal marco foi a dogmatização da Imaculada Conceição em 1854 por Pio IX (1792-1878) e que teve a sua expressão na intensificação do culto de Maria em Itú.
Para o estudo de processos de transmissão de conhecimentos e difusão de obras, procurou-se reconstruir no âmbito do movimento Nova Difusão redes de elos familiares e profissionais. A partir delas procurou-se reconhecer desenvolvimentos que, ultrapassando contextos locais através de viagens e transferências de músicos, assim como do comércio de partituras, marcaram a vida musical de cidades mais distantes do contexto que era alvo da atenção. A cidade de Itú ofereceu condições particularmente favoráveis para esse procedimento. A sua história musical foi marcada pela vigência de redes familiares que passaram conhecimentos e repertórios de uma geração à outra. Membros dessas famílias que particularmente se distinguiram como músicos e compositores atuaram também como professores de familiares e parentes mais jovens.
O interesse por José Mariano da Costa nos estudos musicológicos foi despertado no decorrer da década de 1960 em São Paulo. Relacionou-se estreitamente com estudos da música na região do médio Tietê, de cidades como Sant’Ana do Parnaíba, Pirapora do Bom Jesus, Cabreúva e Itú, assim como de compositores como Jesuíno do Monte Carmelo, Elias Álvares Lobo e Tristão Mariano da Costa. O cantor e pesquisador Edgard Arantes, regente de coros de irmandades de São Paulo e relacionado com meios musicais de cidades dessa região, conservava obras suas em manuscritos. Composições de José Mariano eram cantadas em igrejas de São Paulo, na do Carmo e na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos em São Paulo.
Os estudos foram desenvolvidos no Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão através de pesquisas realizadas em Itú, cidades vizinhas e Piracicaba. Marco nesse desenvolvimento foi a sua consideração em curso de História da Música do historiador Odilon Nogueira de Matos (1916 - 2008) na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da Universidade de São Paulo em 1969. Foi tratado em cursos de história da música em conservatório orientado pelo Centro de Pesquisas em Musicologia em 1970 e, em nível superior, em cursos da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo. Foi considerado em pesquisas conduzidas em Itú e em cursos preparatórios para a primeira execução moderna da Missa S. Pedro de Alcântara de Elias Álvares Lobo em 1974.
A partir de 1975, José Mariano da Costa Lobo foi um dos músicos considerados no projeto musicológico brasileiro desenvolvido na Europa a partir do Instituto de Musicologia de Colonia. O projeto era dedicado ao desenvolvimento de uma musicologia de orientação cultural dirigida a processos. A música sacra no século XIX como foco de atenção correspondeu à atualidade de interesses da reconsideração desse século e dos estudos referentes a questões sacro-musicais perante as mudanças de concepções e práticas decorrentes do Concílio Vaticano II. Um volume dedicado às culturas musicais da América Latina no século XIX encontrava-se então em preparação.
Entre as obras levantadas e consultadas nas pesquisas, um Ave Maria de José Mariano da Costa Lobo foi objeto de particular atenção. Uma das razões desta escolha foi a difusão dessa composição, constatada em outras cidades e na capital. O manuscrito, utilizado por Edgard Arantes Franco dava testemunho dessa ampla difusão. A composição não foi escrita em Itú, mas em Piracicaba, trazendo a data de 27 de agosto de 1887.
Sendo Arantes professor de canto, a composição era utilizada nas suas aulas, tendo feito, para isso uma redução para canto e piano. Como regente e pesquisador de tradições, era responsável como sucessor de antigos mestres pela música em atos litúrgicos e paralitúrgicos em procissões de Semana Santa da irmandade do Rosário e de outras irmandades em São Paulo. Tinha conhecimentos e mesmo participava com os cantores e instrumentistas que dirigia em outras cidades, entre elas em Itú, sendo familiar com composições de José Mariano da Costa Lobo, que era conhecido apenas como Juca Lobo ou Zezinho Lobo.
O Ave Maria de José Mariano era uma das várias composições sobre essa oração que Arantes Franco conservava no seu acervo e que empregava nas suas aulas de canto. Várias delas dirigia a atenção a localidades da região do Tietê, que, devido ao popular Ave Maria de Erotides de Campos (1846-1945), originário de Cabreúva, era por ele chamada como „zona das Ave-Marias“.
A apreciação da composição de José Mariano em meios do ensino de canto em São Paulo, em particular também naqueles da esfera ítalo-brasileira do Conservatório Carlos Gomes, onde Arantes era professor de canto, explicava-se pelo cunho lírico-dramático da composição. Diferenciando-se de várias outras composições dessa oração, em geral singelas, a composição de José Mariano, acompanhada por orquestra, distingue-se pelas suas longas vocalizações, que exigem extraordinário preparo técnico e virtuosidade por parte da solista. A dramaticidade de cunho operístico da obra manifesta-se já na sua introdução.
Essas características da composição de José Mariano foram discutidas sob diferentes aspectos. Elas demonstravam a recepção de árias de óperas italianas na região na formação e no desenvolvimento da linguagem musical do compositor, o que poderia ser explicado pela difusão de reduções de trechos de óperas para piano.
Esse teor da composição surgia como singular por vários motivos. O cunho operístico da composição contradizia em geral tendências do movimento de restauração religiosa e sacro-musical do período posterior ao Concílio Vaticano I e que se fizeram sentir de forma particularmente intensa em Itu, cidade que passou a ser. núcleo da ação dos jesuítas europeus do movimento reacionário do Concílio. Do ponto de vista do estilo, essa obra de José Mariano diferenciava-se daquela dos seus professores Elias Lobo nas suas composições mais tardias e Tristão Mariano da Costa, indicando ser José Mariano mais marcado pela recepção de repertório lírico. Nesse sentido, a obra atualiza uma linguagem musical que marcara a música sacra com acompanhamento orquestral anterior ao movimento restaurativo.
A instrumentação da obra, para dois violinos, clarineta, oficleide e harmônio, indica ter sido ela composta para um conjunto instrumental relativamente exíguo; o harmônio sugere ter sido ela foi criada para igreja que ainda não possuía órgão. Essa instrumentação discreta sugere que o compositor já considerara as exigências restaurativas que fomentavam uma maior introspecção e religiosidade na música sacra. A estruturação da obra porém, na sua dramaticidade e no seu virtuosismo vocal, parecendo clamar por uma grande orquestra, surgem em singular contraste com a sua realização sonora. Como sugerido nas reflexões, o compositor parece ter tido no seu processo criador uma concepção de cunho mais grandiloquente da obra, tendo sido, porém, obrigado, na prática, a considerar as expectativas e exigências eclesiais. Haveria assim uma singular tensão ou mesmo discordância entre a realização sonora e a estrutura e configuração melódica da composição.
O compositor teria procurado expressar, nos compassos que antecedem a entrada da voz uma dramaticidade do aparecimento e da saudação do arcanjo Gabriel na anunciação do Senhor, da surpresa de Maria (Lc 1,28) e da saudação de Isabel quando da visita de Maria (Lc 1,42. Os grandes voos virtuosíssimos da cantora decorrem na segunda parte da oração, quando aquele que ora pede a proteção de Maria na hora de sua morte, o Santa Maria introduzido por Pius V em 1568.
A atenção foi dirigida ao papel que a ária Ave Maria de Il Guarany de A. Carlos Gomes (1836-1896) pudesse ter desempenhado na inspiração e na estruturação da obra. A composição de A. Carlos Gomes foi amplamente difundida na capital e em cidades do interior, não só na região de Itú e Campinas, mas também no Vale do Paraíba, como os materiais de acervos consultados o demonstravam.
Para as análises e reflexões comparativas, a composição de José Mariano da Costa foi interpretada durante os colóquios em Colonia por Maura Moreira, cantora brasileira que atuava na Ópera de Colonia.
As reflexões foram sobretudo marcadas pelo fato de ter-se descoberto na Biblioteca Apostólica Vaticana, no contexto do primeiro ciclo de estudos em Roma, em 1975, manuscrito de um Salve Regina dedicada ao Leão III por Tristão Mariano da Costa em 1887. Essa obra revelou o significado dos pronunciamentos de Leão III para os estudos brasileiros, em particular de um meio tão marcado pela religião como aquele de Itú. Leão III, na sua encíclica Vi è ben Noto, onde a situação crítica da sociedade é constatada, recomenda a veneração do Rosário e declara o mês de outubro como mês de Nossa Senhora do Rosário. A intensificação da prática do rosário e da veneração de Nossa Senhora do Rosário, de antiga tradição no Brasil, foi um dos marcos do significado do marianismo no século XIX, já manifestado há décadas com o dogma da Imaculada Conceição, marcado pelas aparições de Maria na Europa e, em São Paulo, no crescente significado do culto de Nossa Senhora da Conceição Aparecida no vale do Paraíba. A devoção a Nossa Senhora da Candelária - da Luz ou das Candeias - na matriz de Itú, revela o significado da veneração mariana na região. Pela data de sua composição, o Ave Maria de José Mariano foi provavelmente motivado pela festa do nascimento de Maria, celebrada no dia 8 de setembro.
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
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