BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
O Pe. José Maurício Nunes Garcia é um dos vultos da história da música no Brasil que mais atenção receberam no contexto de movimento de renovação de estudos musicais e culturais desencadeado em São Paulo na década de 1960. É a partir das pesquisas então realizadas e das reflexões que as acompanharam no contexto de sua época que se pode compreender os desenvolvimentos posteriores dos estudos mauricianos em São Paulo e em centros musicológicos europeus a partir de 1974, onde foram tratados em pesquisas, conferências, encontros, simpósios, assim como em aulas e seminários em universidades. .
Os trabalhos desde então desenvolvidos puderam basear-se em vasta literatura histórico-musical, assim como em estudos que dão testemunho do interesse já de décadas por José Maurício por parte de músicos e pesquisadores. Com o seu vulto e sua obra ocuparam-se historiadores, críticos e publicistas, professores, regentes, organistas, seminaristas e sacerdotes, assim como também pesquisadores culturais em geral. Obras suas faziam parte do repertório da Sé e de outras igrejas já no século XIX e eram conservadas em arquivos como aquele do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Tinham sido apresentadas em concertos que entraram na história da vida musical de São Paulo do século XX. José Maurício era altamente considerado pela religiosidade de suas obras pelo mestre de capela da catedral, Furio Franceschini (1880-1976) que, em 1930 realizou um programa pelo centenário de falecimento do compositor.
Os estudos desenvolvidos na década de 1960 devem ser porém considerados a partir de intuitos mais abrangentes de mudanças de paradigmas que marcaram esses anos em determinados meios universitários e intelectuais. Essas tendências foram acompanhadas por reconsiderações de formas de pensar sentidas como ultrapassadas e delimitadoras, por revisões de posições e perspectivas, de interpretações de autores e de imagens transmitidas na literatura.
Tomou-se consciência que o interesse e o cultivo de obras de José Maurício em São Paulo tinham sido expressões de contextos nos quais se inseriram os seus autores, de correntes de pensamento e de visões que deveriam ser consideradas em estudos de processos culturais, o que podia significar também relativações. Passou-se a reconhecer como paradoxal o tratamento valorativo de José Maurício e de sua obra na literatura de autores marcados pelo ideário nacionalista.
Uma visão de desenvolvimentos marcada por uma perspectiva que, partindo do vir-a-ser de uma linguagem musical com características nacionais, como expressão de brasilidade, desvalorizando todo um passado como de recepção e subserviente de correntes européias, não se coadunava com o reconhecimento do extraordinário valor da obra de José Maurício e o seu tratamento encomiástico. Essas reflexões dirigiram a atenção às relações entre a permanência, a redescoberta e o cultivo de suas obras no século XX e posições de autores marcados por correntes do pensamento restaurarivo da esfera eclesiástica, inserindo-se em contextos que, desde o século XIX, tinham sido marcados por intuitos de combate a desenvolvimentos secularizantes, um antimodernisto que, no século XX, tiveram como marco o Motu Proprio de Pio X (1903)
A celebração de José Maurício e a sua imagem altamente valorizada na literatura explicava-se por posições nacionais em outros sentidos e contextos, o que se revelava na sempre lembrada tensão entre Marcos Portugal (1762-1830) e José Maurício, entre o mais renomado compositor português de sua época e o modesto compositor de ascendência africana, cujo valor foi reconhecido por Sigismund Neukomm (1778-1858), significativamente o principal representante da Restauração, autor do Te Deum pelo Congresso de Viena. Essa tensão, que marcou a imagem negativa de Marcos Portugal e, em contraste, a positiva de José Maurício passou a ser reconhecida como significativa sob o aspecto historiográfico, uma vez que dirige a atenção a posições e visões do pesquisador.
Essas reflexões trouxeram à consciência a necessidade de estudos de processos culturais, religioso-culturais e político-culturais da época de José Maurício, de suas inserções em correntes conservadoras de meios sócio-culturais mais modestos, assim como nas suas correspondências com desenvolvimentos eclesiásticos e políticos nas suas dimensões globais.
Essa tomada de consciência veio ao encontro da orientação dirigida a processos que marcou o movimento Nova Difusão. Não se tratava de propagar obras no sentido de difusão cultural de cunho educativo, mas sim de um novo modo de pensar e proceder através do direcionamento da atenção a processos e suas interações, superando-se delimitações de esferas e áreas de conhecimento. Nesse sentido, passou-se a conduzir estudos sobre os contextos nos quais se procedeu a difusão da obra de José Maurício no século XIX e XX, considerando-os nas suas relações com a produção musical de outros compositores e das correntes culturais em que se inseriram.
Das obras levantadas e estudadas em consultas de arquivos e acervos particulares, a atenção foi dirigida à sua missa em mi bemol como uma das mais difundidas de suas obras, já presente no repertório de igrejas paulistas nas décadas que se seguiram à sua morte. As pesquisas puderam constatar a presença dessa missa na prática sacro-musical de cidades no vale do Paraíba, tendo-se mantido através do século XIX e nas primeiras décadas do XX, como comprovado pelo fato de ter sido frequentemente recopiada.
Um marco nos estudos desenvolvidos no Centro de Pesquisas em Musicologia foi colóquio realizado em São Paulo em 1969 com a presença de Cleofe Person de Matos (1913-2002) que, como pesquisadora especializada na obra de José Maurício veio considerar as fontes levantadas no arquivo em formação, refletir sobre os caminhos de sua difusão e discutir a orientação propugnada pelo movimento Nova Difusão. A atenção dirigida a processos culturais na consideração do compositor e de sua obra determinou um tratamento interdisciplinar das questões tratadas. Uma das sessões foi significativamente realizada no Museu de Artes e Técnicas Populares da Associação Brasileira de Folclore, cujo diretor, Rossini Tavares de Lima (1915-1987), também se ocupara com José Maurício numa de suas publicações.
Um dos aspectos considerados foi o tratamento de José Maurício em cursos de História da Música no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e sua influência no tratamento da matéria em outros estabelecimentos de ensino. O arquivo do conservatório conservava obras do Pe. José Maurício que davam testemunho de sua presença no repertório da antiga sé de São Paulo em fins do século XIX e início do XX. Essa obra remetia a atenção ao músico português Pedro Gomes Cardim e assim a uma família que marcou durante décadas a vida musical, artística, intelectual e o ensino da música de São Paulo. No encontro, tratou-se da presença de José Maurício em meios sacro-musicais de São Paulo, em particular em cursos do Seminário Arquidiocesano dirigidos por Furio Franceschini (1880-1976), organista e mestre-de-capela da catedral de São Paulo. Furio Frandeschini foi um dos principais promotores da obra de José Maurício em São Paulo, salientando-se mais uma vez o histórico concerto em ano rememorativo do centenário de falecimento de José Maurício em 1930.
Essa orientação da pesquisa de José Maurício marcou o seu tratamento em cursos de História da Música no Conservatório do Jardim América, então sede da Nova Difusão, em outros conservatórios por ele marcados, assim como na Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo. Em 1973, realizou-se debate com o pesquisador José Maria Neves (1943-2002) no contexto do Primeiro Congresso Brasileiro de Educação Artística, em São Paulo, quando discutiu-se diferenças de posições e orientações teóricas..
No Exterior, o debate teve prosseguimento no âmbito de programa de estudos voltados ao desenvolvimento de uma musicologia de orientação segundo processos culturais a partir de 1974 na Alemanha. O seu vulto e obra foram considerados em encontros na Escola Superior de Música de Hannover e da Johnnes-Kantorei de Lüneburg com o organista e musicólogo Volker Gwinner (‘1912-2004). No Instituto de Musicologia de Colonia, José Maurício foi considerado com especial atenção no âmbito do projeto dedicado à música na América Latina do século XIX então em desenvolvimento. A atualidade de questões sacro-musicais no ano dos 450 anos de Palestrina motivou estudos de continuidades e retomadas de um estilo palestriniano através dos séculos nas suas referenciações segundo a época tridentina. Nesse contexto a atenção foi dirigida sobretudo ao século XIX, que foi aquele do Historicismo e da Restauração.
O reconhecimento da necessidade de revisões historiográficas quanto a ideários e avaliações, a concepções e práticas de movimentos restaurativos, em particular do Cecilianismo, determinou as reflexões. Esses intuitos de revisões de correntes restaurativas do século XIX e seus precedentes nos séculos anteriores veio ao encontro de um interesse em meios musicológicos pelo século XIX. Em 1976, essas reflexões e análises intensificaram-se por motivo do Centenário da Casa de Festivais de Bayreuth. Em debates que então se realizaram, entre outros nos Dias da Música de Kassel (Kasseler Musiktage), constatou-se e discutiu-se problemas e paradoxias no tratamento do século XIX nos estudos musicológicos.
Os principais momentos dos estudos de José Maurício foram aqueles aos quais esteve presente Cleofe Person de Mattos, realizados em diferentes ocasiões na Alemanha e na França. Um dos pontos tratados, dedicados ao Requiem de José Maurício, deu ensejo a artigo publicado no Vaticano em coletânea que devia servir de ponto de partida para debates no Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira em 1981. Esse evento foi motivado e fundamentado nos trabalhos anteriormente realizados e que levaram a defesa de tese na Universidade de Colonia. Na constituição do programa, fez-se questão que José Maurício fosse rememorado em concerto inaugural no Auditório do Palácio dos Bandeirantes ao lado de H. Villa-Lobos (1857-1959) como um dos vultos exponentes da música no Brasil. A temática devia incentivar reflexões sobre questões historiográficas concernentes a marcos em desenvolvimentos.
A impressão causada por José Maurício a especialistas de música sacra europeus presentes no simpósio de 1981 em São Paulo levou a que algumas de suas obras fossem incluidas no repertório importantes centros da prática sacro-musical na Europa nas décadas que se seguiram, entre eles de Utrecht nos Países Baixos e de Augsburg na Alemanha. Na catedral desta última cidade, os seus Motetos passaram a fazer parte do repertório da Semana Santa. Significativamente, como no passado por Sigismund Neukomm (1778-1858), a obra de José Maurício despertou admiração e respeito sobretudo em músicos de tendências conservadoras ou restaurativas, marcados por preocupações concernentes à sacralidade de obras como parte integrante da liturgia.
José Maurício foi considerado no Fórum de Música Alemanha/Brasil em 1982 e no Fórum de Música Austríaco-alemão de 1984, no qual as atenções foram voltadas a Sigismund Neukomm. Com a fundação do Instituto de Estudos da Cultura Musical no Mundo de Língua Portuguesa em 1985, Ano Europeu da Música, formalizando a internacionalização do Centro de Pesquisas em Musicologia fundado em São Paulo em 1968, José Maurício passou a ser considerado em diferentes ocasiões.
A situação da pesquisa de José Maurício foi tratada no Primeiro Congresso Brasileiro de Musicologia, realizado em São Paulo em 1987, ano do centenário de Villa-Lobos. O Segundo Congresso Brasileiro de Musicologia, dedicado aos fundamentos da cultura musical no Brasil, foi encerrado pela sua Missa para a festa de 2 de fevereiro, executada pelos Meninos Cantores de Petrópolis e pela Associação de Canto Coral, na igreja do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro. Essa obra dirigiu a atenção dos debates ao significado da festa celebrada nesse dia - a da Purificação, da Luz, da Candelária ou das Candeias - para os estudos culturais no Brasil.
José Maurício foi tratado em cursos e seminários das universidades de Colonia e Bonn a partir de 1997. Entre eles, salientaram-se o ciclo de aulas/palestras sobre música no encontro de culturas e de história da música em contextos globais na Universidade de Colonia, assim como seminários sobre a música e a pesquisa no contexto das comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil. Em 2003. José Maurício e sua obra foram considerados em sessão especial de ciclo de aulas sobre o Classicismo e o Romantismo realizado no auditório máximo da Universidade de Bonn.
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
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