BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
Em época marcada pelas remomerações do bicentenário de nascimento de Dom Pedro II (1825-1891), os estudos do século XIX ganham em atualidade. Esses estudos não não são recentes, remontando aos anos de 1960, quando tiveram início os estudos musicológicos que foram continuados em âmbito internacional a partir de 1974. Alguns aspectos desses trabalhos devem ser considerados para que as pesquisas possam desenvolver-se considerando os caminhos percorridos e os resultados de levantamentos e estudos de fontes. Esses estudos foram conduzidos com especial consideração da música, mas não se limitaram à consideração de grandes obras ou de compositores da esfera compreendida como erudita.
Reconheceu-se há muito que não se pode deixar de considerar nos estudos culturais e musicológicos o significado da música na vida sócio-cultural urbana, a de óperas cômicas, de operetas, assim como no seu cultivo no âmbito doméstico. A atenção não pode voltar-se apenas à música sacra e a obras consideradas como de maior significado artístico, sérias ou eruditas, mas deve dirigir-se também à música menos séria, mais divertida, de operetas, cenas cantadas e óperas cômicas.
Essa necessidade já foi reconhecida na década de 1960 e considerada em trabalhos de pesquisas e reflexões teóricas. A consideração de práticas musicais e composições que não podiam ser classificadas como eruditas ou populares, antes de uma esfera intermediária, semi-erudita ou semi-popular nos estudos musicais e culturais passou a ser vista como uma exigência na renovação de perspectivas e procedimentos.
Essa necessidade já foi reconhecida na década de 1960 e considerada em trabalhos de pesquisas e reflexões teóricas. A consideração de práticas musicais e composições que não podiam ser classificadas como eruditas ou populares, antes de uma esfera intermediária, semi-erudita ou semi-popular nos estudos musicais e culturais passou a ser vista como uma exigência na renovação de perspectivas e procedimentos.
Essa convicção marcou a orientação do movimento Nova Difusão, que procurou difundir um novo modo de pensar, ver e agir, perspectivas mais amplas, o que determinou também os trabalhos do Centro de Pesquisas em Musicologia então criado. Esse intento levou à procura de fontes e ao estudo de um repertório musical até então pouco considerado e mesmo desvalorizado. Correspondeu ao interesse por estudos sócio-culturais, de uma sociologia da música e àquela de uma renovação de concepções nos estudos culturais através do direcionamento da atenção à cultura do quotidiano.
Essa orientação teórica teve a sua expressão em cursos, conferências, aulas e concertos realizados no Brasil e, a partir de 1974, na Europa. Como escopo de um projeto elaborado no Brasil e sediado na Universidade de Colonia, procurou-se contribuir ao desenvolvimento de uma musicologia orientada segundo processos culturais em contextos globais. Esse objetivo marcou iniciativas e pesquisas nas décadas que se seguiram.. Nessa atenção a processos, o estudo de difusões, de recepções culturais, de assimilações, adaptações e suas consequências adquire particular significado. Como cidade de Jacques Offenbach (1819-1880), Colonia ofereceu-se de forma privilegiada para o desenvolvimento de estudos voltados à cultura musical urbana de meados do século XIX, à opereta e a vaudevilles.
Um exemplo da difusão e recepção de operetas e óperas cômicas de sucesso na Europa no Brasil é o de composições de Alexandre Charles Lecocq. Esse compositor francês, que alcançou popularidade com as suas operetas - mais de 50 e mais de 100 canções -, foi colega de estudos do brasileiro Henrique Alves de Mesquita (1830-1906).
Também Lecocq proveio de meio social modesto. Estudou como Mesquita no Conservatório de Paris Harmonia com François Bazin (1816-1878), composição com Fromental Halévy (1799-1862) e órgão com François Benoist (1794-1878). Em 1856, em concurso iniciado por Jacques Offenbach e Georges Bizet (1838-1875), alcançou o primeiro prêmio com a opereta Le docteur Miracle.
O seu maior sucesso foi a opereta La Fille de Madame Angot, publicada em Paris e Londres em 1873. Essa opereta, em três atos, com palavras de Louis François Clairville (1811-1879), Pierre-Paul-Désiré Siraudin (1812 –1883) e Victor Koning (1842-1894), foi premiada em Bruxelas em 1872, alcançando sucesso em Paris, Londres, Nova Iorque e em outras cidades da Europa. Tornou-se uma das obras de maior popularidade em idioma francês das últimas três décadas do século XIX.
Contextos histórico-culturais e político-sociais
No II Império francês, a ópera cômica na França foi marcada pelo sucesso de composições de Jacques Offenbach. A sua obra oferece-se de modo especial para análises da cultura urbana em Paris de Napoleão III (1808-1873). Charles-Louis-Napoléon Bonaparte, Presidente durante a segunda República (1848-1852) e Imperador de 1852 a 1870, marcou a época da remodelação de Paris do Barão Georges-Eugène Haussmann (1809-1891) e assim a do nascimento de uma metrópole moderna, uma época de extraordinário significado para estudos de arquitetura, urbanismo e urbano-culturais. Paris tornou-se modelo de muitas cidades e, com a sua dinâmica vida social-cultural, intelectual e musical centro de irradiação de tendências do pensamento e das artes, de atração de pensadores, artistas e jovens de talento, também do Brasil.
Com a Guerra Franco-Prussiana e a derrota de 1870, Jacques Offenbach, associado com o antigo regime, perdeu em influência e popularidade, a ele seguindo-se a época de Lecocq. O ano da derrota da França e da proclamação do Império Alemão em Versailles pode ser considerado como um marco também sob o aspecto dos estudos culturais e da vida musical urbana. Essa nova época correspondeu àquela que, no Brasil, foi a das décadas que sucederam à Guerra do Paraguai.
Como todas as tentativas de periodização, essa data apenas pode ser considerada como um referencial. A atenção deve ser dirigida a processos, a desenvolvimentos já iniciados anteriormente e que tiveram continuidade através de décadas. Lecocq já tinha alcançado sucesso com Fleur-de-Thé em 1868. Depois de mudar-se para Bruxelas no começo da guerra, Lecocq alcançou sucesso com Les cent vierges, representado no Théâtre des Fantaisies-Parisiennes, uma obra apresentada nas grandes capitais européias, em Paris, Londres, New York, Viena e Berlim.
A obra foi apresentada pela primeira vez no teatro Fantaisies-Parisiennes no dia 4 de dezembro de 1872 e teve mais de 500 execuções em Paris, abrindo em 1873 o Théâtre des Folies-Dramatiques, com 411 perfomances.
A opereta refere-se às atividades românticas de Clairette, uma jovem florista de Paris, prometida a um noivo, mas que amava outro. O libretista situou a peça na época do Diretoire de Paris nos últimos dias da Revolução Francesa. Os caracteres são elementos do povo do período revolucionário. O regime era encabeçado por Paul Barras. Mademoiselle Lange era uma artista e ativista anti-governamental. Surge um ativista chamado Ange Pitou e o colarinho negro usado por um dos conspiradores era uma referência ao Pitou histórico - Les collets noirs. A mãe da heroina, Madame Angot - uma mulher de mercado com ambições, é ficional. Corresponde a um tipo conhecido da arte cênica da época revolucionária.
Overture
Chorus and Scène – "Bras dessus, bras dessous" –
Couplets (Pomponnet) – "Aujourd'hui prenons bien garde" –
Entrée de la Mariée – "Beauté, grâce et décence"
Romance (Clairette) – "Je vous dois tout" –
Légende de la Mère Angot – "Marchande de Marée" –
Rondeau (Ange Pitou) – "Très-jolie" –
Duo (Clairette and Pitou) – "Certainement j'aimais Clairette" –
Duo bouffe (Pitou and Larivaudière) – "Pour être fort on se rassemble"
Finale – "Eh quoi! c'est Larivaudière" –
Chorus – "Tu l'as promis" –
Chanson Politique (Clairette) –
Strette – "Quoi, la laisserons nous prendre" –
Partes da opereta, em redução para piano e canto, foram praticadas em meio familiar e em saraus. A difusão de composições de Lecocq no Brasil foi objeto de atenção desde a década de 1960 em São Paulo.
No movimento Nova Difusão, reconheceu-se o seu significado para o estudo de processos culturais das décadas de 1870 e 1880, e que se estenderam até grande parte do XX. O estudo de notícias na imprensa e sobretudo fontes levantadas em acervos particulares puderam confirmar a divulgação e o cultivo de obras de Lecocq, em particular de sua Légende de la Mére Angot - "Marchande de Marée” - em círculos sociais e familiares marcados pela cultura francesa.
Análises dessa composição suscitaram reflexões sobre processos "verticais" de passagem de esferas do popular ao erudito e do erudito ao popular. A melodia, com as suas características de canto popular, tradicional, pelo que tudo indica conscientemente utilizadas por Lecocq, explicaria a sua passagem ao folclore, em especial ao infantil. Ter-se-ia aqui então um retorno de canto popular tradicional usado na composição ao meio popular em contexto cultural distinto daquele de origem, ou seja, no Brasil.
A Légende de la Mére Angot, cantada com acompanhamento de piano, foi encontrada em álbuns de música. A versão considerada em estudos desenvolvidos no Brasil e na Europa proveio do vale do Paraíba. É um documento que documenta a recepção cultural francesa em meios sociais aristocráticos ou da burguesia em cidades como Guaratinguetá, Pindamonhangaba ou Lorena.
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
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