Dom Pedro II. Neg. von Braum. Clément & Cia. Paris. Therese Prinzessin von Bayern. Meine Reise in den brasilianischen Tropen. Berlin 1897

BRASIL-EUROPA

REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA

EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS


 
LUIGI BORDESE / LOUIS BORDÈSE

1808/15-1886


MÚSICA SACRA E O DUETO LES BRÉSILIENNES





 PROGRAMA

BICENTENÁRIO DE D. PEDRO II
1825-2025

Missa em Si Bemol de L-. Bordese. Arquivo A.A.Bispo. Copyright
Missa em Fa Maior de Bordese
Violino da Missa em si bemol de Bordese
Kyrie da Missa em Fa Maior de Bordese
Cium Santo e Credo da Missa em Fa Maior de Bordese

Antonio Alexandre Bispo


Em época marcada pela rememoração do bicentenário de Dom Pedro II (1825-1891), torna-se oportuno dirigir a atenção ao século XIX nos estudos culturais e musicológicos, recapitulando temas que marcaram o desenvolvimento de estudos e reflexões dos últimos 50 anos. Esses estudos, iniciados na década de 1960, foram desenvolvidos em âmbito internacional na Europa desde 1974. O projeto em que se inseriram caracterizou-se pelo escopo de contribuir ao desenvolvimento de uma musicologia orientada segundo processos culturais e, reciprocamente, de estudos culturais conduzidos a partir da música. 


Essa orientação levou ao despertar de interesses por aspectos até então não ou pouco considerados, a nomes e obras silenciados ou desvalorizados. Possibilitou ampliar os estudos do século XIX em diferentes sentidos, superando delimitações de visões e objetos de estudos, dirigindo a atenção à vida cultural e religiosa em contextos urbanos, a compositores que se dedicaram tanto à música sacra como à secular, à ópera, ao canto, a obras orquestrais e peças instrumentais, à música doméstica e para o ensino, assim como a vaudevilles e a teatros de revista. 


Os estudos nessa orientação atentaram à cultura do quotidiano, ao comércio musical, à vida social urbana, à moda e a outros aspectos do dia-a-dia. Pôde-se assim considerar mais adequadamente também a música em igrejas em paróquias, comunidades de bairros e cidades sem grandes tradições, repertórios menosprezados como banais, triviais, medíocres e de gosto duvidoso numa pesquisa marcada por intentos de descobrimento de grandes obras, voltados a passado mais remoto ou guiado - ainda que inconscientemente - por ideários. Essa orientação culturológica trouxe à consciência a necessidade de consideração mais atenta e objetiva de um repertório religioso-musical que foi amplamente divulgado, praticado em educandários e em igrejas menores a partir de seus próprios contextos e valores. Foram composições que marcaram a vida religioso-cultural de grande número de devotos, de famílias, de escolas, que tiveram implicações psico-mentais e que não podem deixar de ser objeto de estudos culturais e sócio-psicológicos.


Luigi Bordese/Louis Bordèse (1809-1886)


Nos estudos de processos culturais entre a Europa e o Brasil no século XIX deve-se considerar Louis Bordèse/Luigi Bordese, um compositor e professor de canto napolitano que viveu e atuou em Paris, sendo por isso considerado como francês. Composições de Bordèse, largamente difundidas através de edições, foram apreciadas e cultivadas em casas de família e em igrejas, sendo intensamente praticadas até meados do século XX. Foram copiadas e recopiadas, podendo ser encontradas em edições e em manuscritos em acervos de igrejas e coleções particulares ou álbuns de professores de canto e piano. 


A difusão e a recepção de composições de Bordèse indicam que a sua produção musical veio ao encontro de expectativas, necessidades e de gosto em determinados círculos sociais e religiosos, inserindo-se em processos culturais que devem ser analisados nos seus pressupostos e nas suas extensões. Bordèse foi autor de método de canto que marcou a formação musical de gerações, de cantoras, pianistas e de diletantes.  


As suas obras para uso doméstico, praticadas no recinto privado de lares, foram não só expressão, como agentes de ensino, transportando imagens, despertando sentimentos, atuando psico-mentalmente, sobretudo na educação feminina de "jeunes filles" como salientado em edições impressas. Nessa função, podem ser consideradas em paralelos com aquela de uma literatura de romances populares e de ilustração. Surgem hoje como marcadas por sentimentalismo, por suavidade e ternura, por singeleza e ingenuidade como em romances populares do século do Romantismo. Significativo foi o fato de Bordèse ter feito transcrições de obras de Chopin (1810-1849) para uma ou duas vozes com palavras do romancista Emile Richebourg (1833-1898) e do poeta belga André van Hasselt (1806-1874). 


Nas suas composições religiosas, Bordèse atentou às possibilidades de execução em igrejas menores e de coros de paróquias, à facilidade técnica e a  economia de recursos e expressões que se evidenciam em obras a poucas vozes e com acompanhamento de harmônio. Um exemplo dessa produção sacro-musical é a sua Petite Messe Solennelle en Sol mineur à 2 voix, largamente difundida e popularizada, conhecida simplesmente como Missa Bordese. Mesmo assim, as suas missas foram consideradas como desafios para coros e regentes, como lembrado por cantores de mais idade. A condução melódica das vozes por Bordese, cantor e professor de canto, exigia maior preparo e aptidão de cantores. Ela diferia, com os seus saltos intervalares e arcos melódicos do tratamento antes recitado das respectivas vozes de composições mais antigas que passavam a substituir. Estas tinham possibilitado a participação de cantores sem maior formação em obras com acompanhamento orquestral, cuja configuração musical, com exceção dos solos, era marcada em grande parte pelas partes instrumentais.


Bordèse, como cantor napolitano e professor de canto, não podia ter deixado de ter procurado projetar-se sobretudo na arte lírica, criando óperas cômicas e peças de cunho bufo, jocoso, que, embora caídas no esquecimento, não podem deixar de ser consideradas nos estudos relacionados com o Brasil. Bordèse foi autor de um dueto de título Les brèsiliennes, uma composição que teve certa popularidade no passado e que sempre constituiu um grande enigma para a musicologia no Brasil. Somente a orientação culturológica dos estudos histórico-musicais em contextos globais possibilitou solucioná-lo. A problemática relacionada com esse dueto é que mais explica a atualidade de Bordèse sob o aspecto dos Cultural Studies. 


Contextos e processos político-culturais


Para estudos de Luigi/Louis Bordese/Bordèse nos contextos de sua vida e nos processos em que se inseriu, assim como a difusão de sua obra no Brasil, impõe-se  considerar desenvolvimentos das primeiras décadas do século XIX na França e em Nápoles, marcado que foi pelo Congresso de Viena (1814/1815).


Embora nascido em Nápoles na época francesa sob o irmão de Napoleão Giuseppe Bonaparte (1806-1808) e do seu genro Joachim Murat (1808-1815), a  formação de Bordese no conservatório de Nápoles caiu no período da restauração do reino de Nápoles/Duas Sicilias. 


Ele não pode ser considerado assim nem a partir de Nápoles sob o domínio dos austríacos ou dos Bourbons (1734-1799/ 1799-1806), nem da República Parthenopéia (1799), nem da época bonapartista (1806-1815) e, muito menos, do posterior reino da Itália (1861-1946). A projeção retrospectiva de uma compreensão da Itália de tempos posteriores ou na sua configuração atual deve ser obviamente evitada. Entretanto, no decorrer da sua vida, já na França, fundou-se o reino da Itália em 1861 no movimento do Risorgimento, sendo proclamado Victor Emmanuel II (1820-1878) a rei da Itália. 


O mesmo cuidado diferenciador deve ser tomado relativamente à sua trajetória na França. As obras de Bordèse que alcançaram sucesso caíram em anos que sucederam a Louis XVIII (1755-1824) e a Charles X (1757-1836)  que, em 1830, dissolveu o Parlamento e levou à Revolução de Julho de 1830, abrindo um período que durou até 1848.  É nessa época que se situa a vinda de Bordese à França. Após o sucesso alcançado em Turim com a sua ópera bufa Zelimo e Zoraide em 1834, transferiu-se a Paris como professor de canto. Pôde alcançar algum sucesso com as óperas comicas La Mantille (1838) e L’Automate de Vaucanson (1840). 


A época de  Louis-Philippe (1773-1850), da linha Orléans da família dos Bourbons -  cognominado significativamente "Rei cidadão" ou "Rei burguês" - foi aquela de crescente  poder da burguesia, enriquecida com o desenvolvimento econômico da França, construção de estradas de ferro e industrialização. Também foi uma época marcada por um crescente reacionarismo, o que levaria à entrada da França na Santa Aliança (Rússia, Prússia, Áustria) e, assim, a uma liga  de nações asseguradora da Restauração cujo marco fora o Congresso de Viena.


Quando já tinha alcançara prestígio como professor de canto em Paris, Bordèse publicou em 1858 - três anos após a Exposição Mundial de Paris - a sua L’art du chant, obra que teve grande difusão, marcando o ensino do canto, também no Brasil. Essa já era a época do II Império (1852-1870) ou Empire français sob Napoleão III (1808-1873) ). Bordèse tinha vivenciado a Revolução de 1848, a Segunda República, a reviravolta conservadora de Louis Napoleon Bonaparte como presidente e a atuação francesa no enfraquecimento do poder dos Estados Pontifícios sob Pio IX (1792-1878). No dia 2 de Dezembro de 1851 - singularmente no dia do aniversário de Pedro II - Napoleão tomou o poder, legitimado a seguir por um plebiscito, denominando-se Prince-Presidente e obtendo o título de Imperador em 1852. Louis Bordèse vivenciou também a Guerra Franco-Alemã com a derrota de Sedan e o aprisionamento do imperador, assim como a proclamação da Terceira República em 1870.

 

Mundo pequeno-burguês


Embora tenha alcançado sucesso com obras para a cena lírica, a sua trajetória profissional levou-o sobretudo ao ensino de canto e à composição de música destinada à prática musical para consumo doméstico em época que foi marcada por tendências à vida em família, pequeno-burguesa, sem grandes arroubos e ambições, sempre registrada como ingênua e simplória nas suas expressões. Pode-se constatar paralelos com a época que nos países de língua alemã é designada como a do Biedermeier, marcada pela procura de um refúgio na privacidade do lar com o cultivo da música e das artes em família e em círculos sociais restritos, uma tendência à simplicidade e à modéstia, a atitudes e comportamentos de bonomia e benevolência. Não se pode esquecer que foram justamente qualidades similares de bondade, ingenuidade, simplicidade e modéstia que foram admiradas nos brasileiros por viajantes europeus que estiveram no Brasil em meados do século XIX. 


Nos estudos de música sacra, a atenção volta-se a atos devocionais e a uma religiosidade ingênua, à vida religiosa pessoal, familiar e social marcada por sentimentos piedosos, por conservadorismo e credulidade, por normas morais na condução de vida e de ensino, na formação feminina de filhas, esposas e mães marcadas por valores como singeleza, candura, suavidade, inocência, simplicidade e que se evidenciam também na arte visual religiosa, em imagens de santos e em representações em pinturas e vitrais de igrejas.


Há muitas razões que justificam a atenção a Louis Bordèse, em particular nas suas relações com o Brasil do século XIX.  Os estudos de sua vida e obra dizem respeito a relações entre a Europa e o Brasil sob diversos aspectos. Na Europa, inserem-se em processos sócio-políticos-culturais de Nápoles, do reino das Duas Sicilias da época pós napoleônica e do retorno, de uma nova fase nas relações com a França e da presença napolitana na vida cultural e musical francesa, na migração interna européia da qual Luigi Bordèse é um exemplo. Pode-se aqui considerar paralelos com o Brasil, marcado que foi pela vinda de músicos napolitanos de Portugal com a Corte portuguesa no início do século XIX e do papel que desempenharam nas décadas que se seguiram


A sua consideração é de significado para estudos histórico-culturais franceses da época da reorganização da Europa e de intentos de restituição da antiga ordem cujo marco foi o Congresso de Viena e o retorno dos Bourbons com Louis XVIII. A sua vida na França decorreu em século no qual a França vivenciou grandes transformações políticas, sociais, econômicas, culturais e urbanas. inseriu-se em processos do século que foi da Restauração e do Historicismo que marcaram a música sacra e os estudos musicológicos. Bordèse participou de principais iniciativas e desenvolvimentos na esfera da música sacra na França e que tiveram repercussões no Brasil. 


Da perspectiva do Brasil, a atenção dirige-se ao significado da presença napolitana na vida musical em Portugal e suas extensões com a transferência da Corte para o Rio de Janeiro, às repercussões da Restauração européia com a fundação do Reino Unido Brasil-Portugal e Algarves, às décadas que sucederam o período de brilho da vida musical do Rio de Janeiro, quando também um português de ascendência napolitana - Fortunato Mazziotti (+1855) -  se destacou e o país passou a ter como imperatriz uma princesa das Duas Sicíilias, Dona Teresa Cristina (1822-1889). Pode-se lembrar também que  "Princesa da Independência", Dona. Januária (1822-1901), casou-se com o irmão de Dona. Teresa Cristina, Luigi, o Conde d’Aquila (1824-1897). 


A vida de Bordèse dirige a atenção a processos e interações napolitano-francesas, ao crescente significado de Paris como centro cultural, a uma mudança de pesos quanto a referenciações nas relações internacionais, à intensificação da recepção intelectual, cultural e musical francesa no Brasil. Bordèse estabeleceu-se em Paris em anos que precederam e levaram ao II Império, presenciando a extraordinária metamorfose de Paris e a vida social e cultural dinâmica de uma cidade cosmopolita com a sua vida cultural, operetas, vaudevilles e cafés. Essa vida parisiense também foi fruida por brasileiros,  podendo-se lembrar do jovem Henrique Alves de Mesquita (1830-1906), cuja  ópera cômica Une nuit au château foi impressa pela mesma editora que publicava composições de Bordèse, a empresa de Choudens Père et Fils, fundada em Paris em 1845.


Restauração e sentimentalismo religioso


A consideração da música religiosa de Bordèse não pode ser conduzida a partir de perspectivas determinadas pelo Cecilianismo alemão. Apesar de todas as similaridades e relações, esses desenvolvimentos não podem ser considerados de forma indiferenciada. Para poder-se situar contextualmente as composições religiosas de Bordèse em desenvolvimentos eclesiásticos e sacro-musicais franceses, torna-se necessário considerar os seus elos com o organista e compositor Hippolyte Mompou  (1804-1841), com o qual escreveu em 1840 a sua última ópera, a ópera cômica em três atos La Reine Jeanne de Naples em 1840. A consideração de Mompou permite compreender a inserção de Bordèse em uma corrente da história da música religiosa francesa do século XIX que leva à época da restauração dos Bourbons.


A formação de Mompou iniciara-se como menino de coro em Paris, em Saint-Germain l’Auxerrois  e em Notre Dame. Em 1817 foi um dos primeiros alunos da Institution royale de musique classique, ancienne et moderne, sacrée et profane, fundado por Alexandre Étienne Choron (1771-1834). Choron, foi um regente e erudito estudioso que adquire significado na história da musicologia. Foi compositor de música sacra e romances, marcado pela sua formação no colégio dos Jesuítas em Juilly. É essa formação que explica o seu interesse por compositores italianos antigos como Palestrina, Jommeli e Sabbatine, dos quais publicou obras em 1805. Editou entre 1810-11, com François Fayolle (1774-1852), o Dictionnaire historique des musiciens, artistes et amateurs. Na sua escola, estudaram vários compositores e musicógrafos, como Adrien de La Fage (1801-1862), o crítico musical Paul Scudo (1806-1864), e o compositor de música sacra Xavier Croizier. 


Mompou foi organista na catedral de Tours em 1819/20, retornando à escola de Choron, onde estudou entre outros com François Joseph Fétis (1784-1871),  o autor da Biographie universelle des musiciens et bibliographie générale de la musique, que desde 1837 foi difundida em várias edições. Com a revolução de 1830 e o corte das subvenções oficiais, a escola entrou em dificuldades. Após um período no qual foi dirigida pelo seu genro, a escola encerrou as suas atividades em 1835. Foi reaberta em 1853 sob nova situação política por Louis Niedermeyer (1802-1861), passando a ser conhecida como École Niedermeyer. Niedermeyer havia estudado em Roma, o que explica os seus estreitos elos com  Gioachino Rossini (1792-1868. Em 1820 apresentara a sua ópera Il reo per amore em Nápoles.  


Recepção da música religiosa de Bordèse


Os estudos de contextos que explicam a recepção de obras como as de Bordèse no Brasil dirige a atenção ao papel de ordens religiosas francesas e em particular dos jesuítas no movimento restaurativo. Foi a época de Louis Lambillote SJ (1796-1855), compositor de obras sacro-musicais que também foram cultivadas no Brasil, em particular em escolas marcadas pela presença jesuítica como o da cidade de Itú, onde várias de suas composições foram encontradas.


A recepção de missas e outras composições sacro-musicais de Louis/Luigi Bordèse/Bordese no Brasil inseriu-se no movimento restaurativo religioso francês, cujos principais representantes estiveram representados na vida musical de igrejas e em conventos das ordens religiosas francesas que foram chamadas pelas autoridades eclesiásticas do Brasil para auxiliar os intentos de intensificação da religiosidade de famílias e da formação católica de novas gerações segundo normas morais eclesiásticas, em particular de recatadas jovens, mães e esposas. 


Desenvolvimento dos estudos 


Bordèse e suas composições sacro-musicais levantaram questões nos anos marcados pelo movimento de reforma litúrgico-musical que se seguiu ao Concílio Vaticano II. Bordèse continuava presente como compositor na prática musical de algumas igrejas. As suas composições tinham sido intensamente executadas antes do Concílio, ainda que já vistas com certa reserva por aqueles que se orientavam segundo as prescrições do Motu Proprio de Pius X (1903). Cópias e adaptações a condições locais quanto a instrumentos foram encontradas em muitas cidades, de São Paulo, Rio de Janeiro, da Bahia e do Nordeste, salientando-sobretudo o santuário de Aparecida, principal centro do culto mariano e de romarias do Brasil. A Missa com um bemol de Bordèse, reduzida para harmônio ou arranjada para ser acompanhada por instrumentistas de banda pelo mestre local José Catharina, difundiu-se por outras cidades do vale do Paraíba,


Bordèse, não ou pouco mencionado em léxicos e compêndios, era nome conhecido por professores e alunos de canto ao lado de outros como Giuseppe Concone (1801-1861), também professor de canto italiano que alcançou renome em Paris. Os seus métodos eram de uso sobretudo entre professores italianos ou ítalo-brasileiros considerados como representantes do verdadeiro bel canto em São Paulo, O seu nome era usual em estabelecimentos de ensino marcados pelas meios ítalo-brasileiros como o Conservatório Carlos Gomes de São Paulo, onde a formação teórica dos alunos era feita segundo compêndios de Giusto Dacci, músico e compositor de Parma (1840-1915).


Conheciam-se dele também composições para canto e piano ou só para piano consideradas como sendo de música de salão, sentidas como não adequadas em figurar em programas de ensino ou em concertos. Essas peças eram difundidas através de edições francesas de romances mélodies ou paroles pour jeunes filles na formação musical feminina em lares, mas também em conservatórios. Músicas como Le départ pour les vacances, La Fête du Pasteur, Un nid de Rossignols, Les Fauvetes, eram ensinadas e tocadas ao lado de composições de autores como Auguste Durand (1830-1909), Charles Gounod (1818-1893), Ernest L’Épine (1826-1893), Émile Paladine (1844-1926), Louis-Barthélémy Pradère e o poeta Catulle Mendes (1841-1909).


No ciclo de estudos luso-brasileiros realizado em Portugal em 1974, foi possível constatar a difusão de obras de Bordèse no século XIX e nas décadas anteriores ao Concilio Vaticano II em igrejas menores de povoados. Foram encontradas em acervos da Beira Baixa. Pertenceram ao repertório do colégio de jesuítas de São Fiel. Constatou-se que obras de Bordese foram como no Brasil copiadas e adaptadas, sendo conservados manuscritos na Biblioteca da Ajuda.


Relativização de julgamentos


No âmbito do movimento de revisão e renovação de perspectivas nos estudos culturais e musicais, passou-se a considerar categorizações e valorizações. A superação desse modo de ver e pensar devia ser alcançada a partir de uma orientação da atenção a processos nos seus diferentes sentidos, posição que marcou o movimento Nova Difusão e o seu Centro de Pesquisas em Musicologia.


A preconizada orientação dirigida a processos, trazia à consciência que a desvalorização de composições e correntes do século XIX resultava das perspectivas do observador, decorrentes no seu próprio condicionamento e contextualização sócio-cultural. Esse modo de ver e julgar era resultado da posição do observador, que levava a uma distinção entre esferas artísticas e sócio-culturais qualitativamente mais altas e aquelas mais populares, triviais ou banais. Tornava-se necessário superar barreiras derivadas dessas categorizações de objeto da pesquisa e analisar essas expressões a partir de seus próprios pressupostos e inserções em processos histórico-culturais. 


A necessidade de abertura de perspectivas dizia respeito não apenas à exigência de se considerar a música popular, até então pouco ou não estudada, mas sim também a de uma produção musical desvalorizada. A atenção a um estética trivial correspondeu aos intentos de renovação de perspectivas nos estudos culturais empíricos em crítica a posições até então dominantes, o que se manifestou sobretudo na área dos estudos do Folclore.


A problemática do Kitsch e a "Estética Trivial"


As reflexões contribuíram ao desenvolvimento de estudos de produção musical considerada como trivial, ao levantamento de composições consideradas como de música de salão em coleções particulares e de composições religiosas em arquivos de igrejas. Questões do Kitsch, em particular do Kitsch religioso, davam motivo a questionamentos na área de Estética da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP).  


O Kitsch foi discutido como expressão e agente de problemas quanto a mentalidades e atitudes de atualidade na situação social-política dos anos 60. Uma atitude crítico-criativa no tratamento do que seria o Kitsch levou á procura de novos caminhos para a desativação de sua potencialidade negativa quanto aos riscos da inveracidade, de discordância entre forma e conteúdo, o que teve a sua expressão na formação do grupo musical estudantil que já na sua denominação indicava os sentidos desmascaradores do Kitsch através da paródia e sátira: Faunos da Pauta. Nesses eventos, considerou-se pela primeira vez um repertório não ou pouco considerado na historiografia e que tanto marcou os desenvolvimentos histórico-musicais do Brasil.


No âmbito dos estudos superiores de música, as reflexões sobre Kitsch e o banal e trivial na cultura musical e o ensino tiveram sequência na área de Estética e Etnomusicologia do Instituto Musical de São Paulo entre 1972 e 1974. 


Internacionalização dos estudos


Bordèse foi um dos compositores do século XIX considerados no projeto brasileiro de desenvolvimento de estudos musicológicos e culturais em contextos globais iniciado em 1974 na Europa. Desenvolvido a partir do Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia em cooperações com pesquisadores de outros institutos e áreas de estudos, em particular do Instituto Português-Brasileiro, o projeto foi marcado de início pela então atualidade de questões referentes à música sacra e pelo interesse por estudos mais diferenciados do século XIX na Musicologia. 


A celebração dos 450 anos de Palestrina em 1975 e os debates concernentes a mudanças litúrgico-musicais em anos pós-conciliares, em particular em países extra-europeus levavam a revisões de concepções que tinham marcado os estudos de música sacra. Como considerado em São Paulo quando da elaboração do projeto, a data oferecia uma oportunidade para que se tratasse mais atentamente questões de concepções sacro-musicais. Perspectivas e procedimentos do restauracionismo sacro-musical do século XIX devia ser relativizado a partir de suas inserções em contextos da Europa de sua época. A atualidade do século XIX na musicologia alemã manifestava-se em projeto editorial em andamento dedicado às culturas musicais da América Latina no século XIX e que reunia pesquisadores de vários países latino-americanos. 


A necessidade de reconsiderações desse século nos estudos musicológicos em geral teve a sua expressão nos Dias da Música de Música realizadas em Kassel (Kasseler Musiktage), em 1976. Nesse evento salientou-se a situação paradoxal resultante de um lado da permanência de obras e compositores do século XIX em repertórios, e de outro do esquecimento de vultos e de uma produção criadora que marcaram desenvolvimentos no passado. Em debates e concertos, compositores, obras, formas e práticas de execução caídos em esquecimento foram considerados. 


No âmbito do programa brasileiro, lembrou-se, entre os muitos nomes já praticamente esquecidos ou ignorados da música na Europa que tiveram as suas obras difundidas no Brasil, entre eles o de Bordèse.


O enigma do dueto Les brésiliennes


O grande interesse despertado por Luigi Bordese nos estudos de Estética no Brasil tinha sido resultado do conhecimento de que era autor de um dueto denominado de Les brésiliennes.  Esse dueto foi uma das expressões menos compreendidas, mais enigmáticas nos estudos de música em São Paulo. O nome dessa peça apresentava-se à primeira vista como sendo de significado por dar testemunho da presença do Brasil na França em meados do século XX. O  texto, porém, surgia como incompreensível por não revelar elos explícitos com o Brasil. Pelo seu teor, e pela sua menção a mulas, surgia como paradoxal e absurdo. A solução desse enigma foi resultado dos estudos e debates relacionados com a cultura urbana, a vida do dia-a-dia, com a moda e o consumo.


Fontes heterogêneas: jornais e revistas ilustradas


A questão do banal tratada no Brasil correspondeu à atualidade do debate sobre a "Estética Trivial", tema considerado sobretudo por Carl Dahlhaus (1928-1989). No programa brasileiro de estudos, a partir das experiências e reflexões em meios universitários da FAU/USP, procurou-se promover a reconsideração de perspectivas nos estudos culturais que levavam a desvalorizações do que era visto como trivial ou banal. 


Tratava-se de discutir processos de difusão e recepção musical em contextos extra-europeus de compositores, obras, correntes estéticas e práticas. Passou-se a considerar posições críticas referentes à qualidade de composições difundidas em regiões extra-européias, que teriam recebido e assimilados refugos europeus, o que teria influenciado compositores locais e tendências estéticas o que explicaria também anacronismos. Ter-se-ia aqui um problema quanto a processos difusivos e receptivos em contextos globais, o que levantaria também problemas historiográficos e de pesquisas de fontes.


Os estudos se concentraram no levantamento e análise de fontes, de procura de partituras e textos em jornais e revistas ilustradas, de notícias sobre autores e obras esquecidas ou pouco consideradas na literatura. Material significativo pode ser encontrado sobretudo na Bibliothèque nationale de France. Focalizada foi sobretudo a época da vida e atuação de Bordèse em Paris.

 

A solução do enigma de Les Brésiliennes: sapatos, sandálias e mulatas 


Nos estudos sobre Bordèse em Paris, a consulta de fontes em geral não consideradas, periódicos, jornais, revistas de ilustração e reclames do século XIX foi decisiva. Seguiu-se nesse procedimento o exemplo de Gilberto Freire (1900-1987),


Nos estudos em Paris, a atenção maior foi dirigida ao grande enigma representado pelo fato do compositor ter escrito o dueto Les Brésiliennes com um texto que não denotava referência explícita ao Brasil, mas mencionava o trote de mulas. Esse dueto, para soprano ou mezzo-soprano, podendo ser cantado em coro, uma peça em Allegro con brio, bem ritmada, apresenta uma melodia que também surge em arranjo para piano nas Seis melodias populares op. 163 de Bordèse. A peça chegou a ser gravada por cantoras da Opéra Comique com acompanhamento de orquestra: Mlle. Brolhy e Mme. Bakkers. 


E. Plouvier (1821-1876), o autor do texto, era conhecido de outras obras, como L'esclave mauresque e Une nuit blanche de Jacques Offenbach (1819-1880), ou de La Chanson de Triboulet de Hyppolyte Monpou, publicada na France Musicale. Era conhecido do Brasil por ser também autor de Les brises du printemps de Giuseppe Concone, publicado no Le monde musical (No. 43 et 44).


Os estudos puderam desvendar o enigma do Les Brésiliennes a partir do estudo de literatura considerada como trivial de revistas ilustradas e anúncios de moda. Neles constatou-se que o termo mules designavam - até o presente - sapatos leves de salto, decantados como sendo graciosos, chiques e confortáveis para damas elegantes e delgadas, próprios para dias quentes de verão. 


O termo les brésiliennes - assim como o termo havaianas para sandálias na atualidade - devem ser assim entendidos como sapatos semi-abertos, leves, usados tanto no verão como calçados de moda em sociedade. O termo e a obra de Bordèse diziam respeito a um sapato associado com o Brasil, uma questão a ser estudada sob o aspecto da história da moda feminina e dos estudos culturais. 


Há um jogo de palavras, uma vez que o termo mule também significa o animal, a mula, a fêmea do burro, um animal híbrido de jumento e égua, também usado em sentidos figurados de teimosia própria de burros e mulas. Essas associações e o texto de Les brésiliennes revelam sentidos racistas e discriminatórios, uma vez que o termo e a noção do híbrido se relacionam com o conceito de mulato, designativo de pessoa nascida da união de europeu branco e de africano. Percebe-se na análise do texto relações entre os termos mule como designativo de mula, animal de carga e um calçado, que porta aquela que o usa, e mulata, estabelecendo associações jocosas com o andar leve e gracioso de mulatas, mas ao mesmo tempo insinuando burrice e teimosia de um animal conhecido pelo fato de empacar. O dueto Les Brésiliennes surge sob este aspecto como tendo sentidos questionáveis, colocando os seus autores Plouvier e Bordèse em luz negativa, tornando-os antipáticos aos brasileiros.  


Os resultados desses estudos, que corresponderam às reflexões sobre uma problemática discutida já no âmbito dos Faunos da Pauta na FAU/USP em São Paulo em 1960/70, foram considerados em encontros, seminários e cursos sobre a Estética no século XIX. A temática foi considerada com mais atenção no seminário que tratou de relações entre Estética e Ética e dos primeiro colóquios musicológicos sobre Cultural Studies e Gender Studies na Musicologia realizado na Universidade de Bonn em 2003. 

D. Pedro II. Kaiser von Brasilien. Phot. Melsenbach Riffarth München. V. Braun Clément, Paris. Da obra: Therese Prinzessin von Bayern, Meine Reisen on den Brasilianischen Tropen. Berlin D. Reimer (Erst Vohsen) 1897.

Este texto é extraido da publicação

Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.


ISBN 978-3-384-68111-9


O livro pode ser adquirido aqui

Pedro II Kaiser von Brasilien. Phot. Melsenbach Riffarth München. V. Braun Clément, Paris. Da obra: Therese Prinzessin von Bayern, Meine Reisen on den Brasilianischen Tropen. Berlin D. Reimer (Erst Vohsen) 1897.
Druck und Verteilung: Tredition. Ahrensberg