BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
Os irmãos Luigi Ricci (1805-1859) e Federico Ricci (1809-1877), nascidos em Nápoles, cujas obras alcançaram considerável sucesso no século XIX, hoje em grande parte esquecidas, são compositores que despertaram atenção nos estudos musicológicos brasileiros já na década de 1960. Esse interesse deveu-se à constatação da surpreendente presença de suas obras, tanto no repertório de óperas do Rio de Janeiro, como em adaptações de aberturas e trechos de obras para bandas em várias regiões do Brasil.
Esses irmãos foram alguns dos muitos compositores, silenciados na literatura e no ensino, cujos nomes e obras são hoje praticamente desconhecidos, que devem ser considerados nos estudos culturais conduzidos a partir da música referentes ao Brasil nas suas relações com a Europa no século XIX. Torna-se sempre oportuno relembrar compositores como Luigi e Federico Ricci quando se considera o II Império no Brasil nos estudos musicológicos orientados segundo processos culturais.
A consideração de suas óperas abre perspectivas para estudos da vida cultural, da recepção e difusão de obras européias no Brasil, de óperas e seus enredos, o que é de significado não só sob o aspecto da música como do teatro e da literatura. Esses estudos possibilitam considerar significados da arte lírica sob o aspecto sócio-psicológico em diferentes épocas e contextos.
A primeira constatação que despertou o interesse pela vida e obra dos irmãos Ricci no Brasil foi o fato de terem nascido em Nápoles e obtido formação no Conservatorio di San Pietro a Majella, originado em 1808 da fusão de outros conservatórios como Real Collegio di Musica di S. Sebastiano. Tiveram assim uma formação de vários outros músicos que desempenharam importante papel na vida musical do Brasil. Entre os seus professores, salientaram-se Giovanni Furno (1748-1837) - professor de Vincenzo Bellini (1801-1835) e Niccolò Antonio Zingarelli (1752-1837), professor de Saverio Mercadante (1795-1870), que seria a seguir o seu sucessor. Ambos destacaram-se cedo como compositores, criando grande número de composições sacras, para instrumentos e óperas, sendo as suas obras difundidas e populares na sua época em vários centros itálicos e na Europa em geral.
Luigi Ricci desenvolveu uma intensa produção de óperas, num total de cerca de 30 obras, apresentadas não só em centros da Península itálica, mas também em outros países, entre eles no Brasil. Luigi Ricci atuou também na esfera da música sacra, sendo nomeado mestre de capela da catedral de Trieste, ao mesmo tempo que desempenhou o papel de maestro no Teatro Grande. Também o seu irmão Federico viveu em Trieste.
Federico atuou entre 1853 e 1869 em S. Petersburg, orientando como inspetor o ensino de bel canto no conservatório, transferindo-se a seguir a Paris, onde duas de suas obras foram encenadas em francês. A sua produção é vasta, tendo escrito dezenove óperas, retirando-se a seguir à Itália. Os irmãos Ricci cooperaram na criação de óperas, tendo escrito em conjunto quatro obras, salientando-se Il Crispino e la Comare, com libreto de Francesco Maria Piave (1810-1876), representada pela primeira vez no Teatro S. Benedetto de Veneza em 1850. Essa ópera foi objeto de análises em artigo publcado em Paris em 1866 (F. de Villars, Notices sur Luigi et Federico Ricci)
A tomada de consciência da necessidade de maior atenção ao repertório de óperas e concertos sob o aspecto de suas inserções em contextos e processos sócio-culturais marcou o movimento de revisão e renovação de perspectivas histórico-musicais e nos estudos culturais iniciado em São Paulo. A predominância e a popularidade de óperas de compositores italianos foi uma das constatações que motivaram reflexões em meios marcados pela presença ítalo-brasileira na vida musical e no ensino em São Paulo.
Preocupações com questões concernentes à ópera - correspondendo a expectativas econômicas de empresários no financiamento das encenações- marcaram reflexões com Fausta Sermarini, catedrática do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo em 1963/4. A necessidade de renovação de repertórios e perspectivas foi tratada em particular no Conservatório Carlos Gomes, instituição que remontava á sociedade Benedetto Marcello e dirigida por Armando Belardi (1898-1989), maestro que se destacava no cenário lírico.
Nas reflexões, tomou-se consciência da necessidade de mudança de perspectivas e procedimentos, assim como de estudos mais atentos das relações ítalo-brasileiras na história da música a partir de fontes a serem levantadas. Concepções de difusão cultural, de divulgação com finalidades educativas passaram a ser questionadas. Não era recente a crítica a um repertório operístico marcado por repetições, pela apresentação de óperas mais conhecidas e que garantiam público, correspondendo a expectativas econômicas de empresários no financiamento das encenações.
Reconheceu-se que as reflexões deviam ser conduzidas em contextos mais amplos, superando-se separações entre grupos sociais de diferentes origens imigratórias na metrópole cosmopolita, correspondendo às mudanças decorrentes de novas gerações ítalo-brasileiras em processos de integração, e em paralelos e interações com desenvolvimentos na Itália. O direcionamento da atenção a processos que transpassam delimitações e fronteiras deveria contribuir a um novo modo de pensar, de ver e proceder. A difusão desse modo de ver e proceder, transdisciplinar e voltado a contextos globais, à superação de modos de pensar em compartimentos, passou a ser escopo do movimento Nova Difusão.
O bel canto no Brasil foi considerado em diálogos com professores de canto, em particular aqueles italianos e ítalo-brasileiros que se empenhavam pelo seu cultivo e pela defesa do que viam como sendo a sua verdadeira tradição. A "verdadeira tradição do bel canto", compreendendo não apenas aspectos técnico-vocais, mas qualidades interpretativas, estados interiores e atitudes tinha os Ricci como seus representantes, dando continuidade à tradição do barítono romano Antonio Cotogni (1831-1918), de renome na sua época.
A publicação de Ayres de Andrade sobre a época de Francisco Manuel da Silva, fornecendo informações sobre programas de concertos e óperas, despertou o interesse por obras de compositores europeus. Tomou-se consciência de que o interesse de pesquisadores no levantamento e na consulta de fontes não devia limitar-se ao intento de descobrimento de nomes e obras de músicos brasileiros. A consideração de obras executadas no passado em cidades do Brasil foi reconhecida como de importância para estudos de difusão músico-cultural e de suas relações com a produção musical brasileira. (Francisco Manuel da Silva e seu tempo II, 1808-1865:; Uma fase do passado musical do Rio de Janeiro à luz de novos documentos, 2 vols. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1967, 121 ss.).
Em 1845, apresentou-se, no Teatro São Pedro de Alcântara, a ópera Chiara di Rosemberg de Luigi Ricci, melodrama em dois atos, estreado no Scalla em Milão em 1831. Em 1858, levou-se o melodrama bufo Eran due or sono tre de Luigi Ricci (estreado em Turim em 1834) no São Pedro de Alcântara e, no mesmo teatro, a revista Chi dura vince, ovvero La luna di miele (estreada em Roma em 1834).A ópera Il Crispino e la Comare dos irmãos Luigi e Federico Ricci foi levada pela primeira vez em 1861 no Lírico Fluminense. No ano seguinte, em 1862, apresentou-se Estella di Murcia, de Federico Ricci (estreada em 1846) também no Lírico Fluminense.
No decorrer de viagem de pesquisas ao Leste e Nordeste do Brasil em 1972, realizada com o apoio de várias instituições, entre elas do Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão e do Instituto Musical de São Paulo, encontrou-se cópias da abertura da ópera Crispino e la comare em acervos de bandas de cidades da Bahia como Porto Seguro, Ilhéus e Feira de Santana. Esses fundos demonstraram a larga difusão dessa obra, ainda que em adaptações às diferentes possibilidades instrumentais existentes. Essa revelação levantou de início questões de identificação de obra e autor, mencionados de forma imprecisa nos manuscritos ou mesmo pouco legíveis devido ao estado de conservação das partes. Essas dúvidas e as cogitações marcaram os relatos e estudos que se seguiram à viagem, sendo discutidos no âmbito de cursos de pós-graduação em História da Música.
A partir de 1974, os estudos do repertório lírico em relações internacionais tiveram início com a esposa de Volker Gwinner (1912-2004, professor da Escola Superior de Música de Hannover, que possuía longa trajetória artística como cantora na Escandinávia. A seguir, esses estudos foram conduzidos juntamente com Maura Moreira, cantora brasileira de projeção internacional, atuante na Ópera de Colonia. A intensificação da atenção à pesquisa musical italiana e o estreitamento de laços e cooperações entre pesquisadores alemães e italianos foram anelos de musicólogos como Karl-Gustav Fellerer (1902-1984). Já em 1987 realizaram-se viagens de estudos e encontros em várias cidades italianas, entre elas Nápoles e Veneza.
Um foco de sua atenção foi o século XIX, em particular também em países e regiões extra-européias, até então insuficientemente consideradas na pesquisa. Iniciara nesse sentido um amplo projeto editorial, cujo volume dedicado à América Latina encontrava-se em andamento, reunindo vários pesquisadores latino-americanos, tanto representantes da pesquisa histórico-musical como etnomusicólogos.
A problemática do século XIX na pesquisa foi tema de debates nos Dias da Música de Kassel (Kasseler Musiktage), em 1976. Nele considerou-se a situação paradoxal representada por continuidades do século XIX no XX, evidenciada na permanência de grandes obras no repertório perante a caída em esquecimento de muitos nomes, composições e práticas que foram de significado na sua época.
Reconsiderações do século XIX na pesquisa exigiam porém não só redescobertas de obras e autores esquecidos, mas análises de processos que ultrapassavam fronteiras, regionais, nacionais e continentais. A difusão de obras em diferentes contextos europeus e extra-europeus, a sua recepção e os seus efeitos e consequências na vida cultural, na produção musical e no ensino deviam estar no foco das atenções. A constatação da difusão de obras de compositores europeus em outros continentes não devia levar apenas a menções marginais e curiosas em estudos histórico-musicais, mas dar impulsos a estudos mais abrangentes de interações culturais, assumindo neste sentido significado para análises culturais recíprocas, em particular também para os países receptores. Essa ampliação de perspectivas era principal objetivo do projeto de pesquisas, uma concepção teórica elaborada desde a década de 1960 em São Paulo.
Os estudos revelaram o significado da difusão da ópera Crispino e la comare sob o aspecto de de uma pesquisa musical orientada segundo processos culturais. A sua presença no repertório de bandas do litoral da Bahia e do Nordeste indica um aspecto da vida musical e cultural pouco considerado, ou seja, o da popularidade de temática de cunho fantástico-cômico, como expresso no título da obra: Melodramma fantastico-giocoso. Essa temática dizia respeito à medicina e à morte, tendo como figura o médico ou o Doutor Crispin). O libreto de Francesco Maria Piave (1810-1876) baseava-se no libretto de Giuseppe Checcherinis (1829-1899) para a ópera de Giuseppe Curcio (1752-1832) Il ciabattino medico e la morte, de 1832, e este na comédia Il medico e la morte de Salvatore Fabbrichesis (1772-1827).
Crispino e la comare a partir das fontes levantadas no Brasil, foi obra considerada no âmbito do Instituto de Estudos da Cultura Musical no Mundo de Língua Portuguesa a partir de 1985. Os irmãos Ricci foram considerados no Ano Carlos Gomes (1986) em trabalhos conjuntos com a cantora Neide Carvalho, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Musicologia.
Os irmãos Ricci e a difusão de suas obras foram mencionados em cursos e conferências, em particular no ciclo Música no Encontro de Culturas e História da Música em Contextos Globais nas universidades de Colonia e Bonn a partir de 1997.
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
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