BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
Manuel Julião da Silva Ramos, músico proveniente de Minas Gerais e que atuou em cidades de São Paulo em fins do século XVIII e início do XIX, foi um dos compositores brasileiros considerados em estudos musicológicos em São Paulo desde a década de 1960.
As pesquisas desenvolveram-se no Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão, formalizado em 1968. A partir de 1972, Manuel Julião considerado no curso de tema Música na Evolução Urbana de São Paulo ministrado na Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo, onde, com base nos trabalhos anteriores, fundou-se o Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista.
Esses estudos tiveram prosseguimento em cooperações internacionais em centros musicológicos na Alemanha desde 1974. Inseriram-se no programa brasileiro dedicado ao desenvolvimento de uma musicologia em contextos transnacionais possibilitado pelo Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD).
Manuel Julião da Silva Ramos era um dos compositores do interior de São Paulo lembrados por Andrelino Vieira em 1960, um compositor e regente proveniente de Santana do Parnaíba, relacionado com músicos de várias cidades de São Paulo e Minas Gerais, com os quais mantinha intercâmbios de partituras. A sua rêde de contatos abrangia tanto cidades da região do Tietê como aquelas da zona bragantina e do Vale do Paraíba. Mantinha elos com músicos de cidades da sua região de origem como Araçariguama, Pirapora do Bom Jesus, Cabreúva, Itú, mas também de zona bragantina, como Atibaia e Nazaré Paulista e, no vale do Paraíba, sobretudo com São Luís do Paraitinga, cidade natal de Osvaldo Cruz (1872-1917), vulto que dava o nome do conservatório por ele dirigido. Mantinha relações com cidades de Minas Gerais, com músicos de cidades como São João del Rei, onde as suas composições eram executadas. Através dessa rede de contatos com músicos locais e com descendentes de músicos que viviam na capital e que atuavam em festas religiosas em cidades do interior, como Verissimo Gloria, encontrou-se obras de Manuel Julião da Silva Ramos. Um Glória de missa por ele composta foi encontrado em acervos de Pirapora do Bom Jesus.
O interesse por Manuel Julião da Silva Ramos foi despertado em anos marcados pela tomada de consciência da necessidade de renovação de perspectivas e procedimentos nos estudos culturais e musicais. Um pensamento marcado por compartimentos, esferas e áreas categorizadas como do erudito e popular, determinador de matérias teóricas e métodos, devia ser superado, dirigindo-se a atenção a processos que ultrapassam delimitações em diferentes sentidos, de áreas e regiões. O interesse passou a ser voltado a estudos de processos difusivos, a mobilidades, a relações entre grupos sócio-culturais, étnicos, entre cidades e regiões, a interações de redes sociais, ao transpasse de fronteiras.
A promoção dessa abertura de perspectivas passou a ser objetivo do movimento Nova Difusão e marcou as atividades do Centro de Pesquisas em Musicologia. Manuel Julião da Silva Ramos foi um dos muitos músicos que diziam respeito a relações entre Minas Gerais e São Paulo, assim como àquelas entre diferentes cidades do interior paulista. O estudo de processos culturais a partir da música nas suas relações com expansões no contexto de ocupações e uso de terras, de desenvolvimentos comerciais, abertura de estradas, decadência e florescimento de centros foi tema de curso de História da Música no Brasil levado a efeito pelo historiador Odilon Nogueira de Matos (1916-2008) no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo (FFCL/USP) em 1969.
Esses problemas historiográficos diziam respeito sobretudo a acepções de periodização que se expressavam nos conceitos de "Música Barroca" e de "Música Colonial". Esses termos revelavam e favoreciam modos de pensar em compartimentos, em gavetas, dificultando análises adequadas de processos. Essa problemática levou à realização pela Nova Difusão do Festival Barroco, em 1970, com o apoio do Departamento de Cultura do Município de São Paulo. Nesse evento, ao lado de obras de compositores europeus, executaram-se e discutiram-se composições de autores de Minas Gerais e de Manuel Julião da Silva Ramos. O Festival foi precedido e acompanhado por conferências nas quais se expôs os caminhos que levaram ao descobrimento deste músico e de sua obra no âmbito do movimento e que não deviam ser obscurecidos por falsas alegações ddivulgadas na imprensa.
O Gloria de Missa de Manuel Julião da Silva Ramos, foi não só principal motivo da atenção a seu nome desde a primeira metade dos anos de 1960. Foi ponto de partida para estudos concernentes ao tratamento do Gloria em cotejos com obras de outros compositores, entre eles Elias Lobo (1834-1901). Pela sua configuração, pelas suas características estilísticas e pelo tratamento do texto, a obra surge como importante documento da formação musical do compositor nas suas inserções músico-culturais no século XVIII e início do XIX. A sua presença na tradição sacro-musical de cidades do interior de São Paulo ainda no século XX revelou continuidade de obras de um passado mais remoto, da permanência na prática de um fundo mais antigo de repertórios.
No âmbito do Festival Barroco, considerou-se em análises estilísticas a linguagem musical de Manuel Julião com aquelas conhecidas de compositores de Minas Gerais. O seu Gloria diferencia-se do tratamento do texto em obras de compositores posteriores, o que foi considerado com especial atenção em cotejos com o Gloria da Missa São Pedro de Alcântara de Elias Lobo em 1974. Entre os aspectos das análises da obra, considerou-se peculiaridades da condução melódica das partes instrumentais, em particular dos violinos, assim como o tratamento do texto em solos marcados por grandes saltos intervalares e figurações pontuadas nos solos de baixo, no Domine fili unigenite em Sol Maior e os amplos arcos melódicos do Cum sancto spiritu em Re Maior. Esses solos de baixo fizeram supor a existência de cantores de aptidões técnico-vocais capazes de realizá-los, o que teria motivado esse tratamento musical do texto pelo compositor.
A linguagem musical do Gloria de Manuel Julião foi analisada em também em cotejos com o tratamento do texto de autores europeus considerados no Festival, entre eles A. Corelli (1653-1713), A.Vivaldi (1678-1741e J.S.Bach (1685-1750). Ao mesmo tempo, considerou-se a pesquisa realizada nos anos anteriores no vale do Paraíba e que tinham revelado a recepção de obras da Escola de Mannheim como J. Stamitz (1717-1757) e C. J. Toeschi (1732-1788) e assim de correntes do pré-classicismo centro-europeu por personalidades como Manuel Gonçalves Franco em Guaratinguetá, documentando um alto nível na prática instrumental de cordas e sinfônica em São Paulo.
As fontes levantadas e os estudos realizados em São Paulo, tratados no âmbito do projeto musicológico desenvolvido a partir de 1974 em centros de musicologia na Europa vieram ao encontro da atualidade de estudos de música sacra e de questões historiográficas relacionadas com a pesquisa do século XIX. Em ano no qual se rememorou os 450 anos de Palestrina, discutiu-se a permanência através dos séculos de concepções e práticas referenciadas segundo a época tridentina, de estilos designados como antigo, moderno ou mixto nas suas diferentes expressões, assim como os ideários restaurativos do século XIX, que passaram então a ser questionados. A discussão dessa problemática constituía um dos objetivos do projeto elaborado em São Paulo.
Esses intentos corresponderam ao interesse pelo século XIX nos estudos musicológicos de regiões extra-européias, sendo a América Latina considerada em projeto editorial em andamento em Colonia. O interesse, os estudos e a discussão de problemas historiográficos concernentes ao século XIX na musicologia marcaram o ano de 1976 por motivo do Centenário da Casa de Festivais de Bayreuth e que contou, na sua inauguração, com a presença de Dom Pedro II.
Nos Dias da Música de Kassel (Kasseler Musiktage), discutiu-se a seguir a problemática do século XIX na pesquisa e na vida musical, decorrente dos paradoxos resultantes do predomínio de obras de compositores dos Oitocentos em programas de concerto e no ensino paralelamente ao desconhecimento e crescente esquecimento de composições, nomes e correntes que foram de liderança no passado.
O Gloria de Manuel Julião foi considerado em colóquios de pesquisadores e doutorandos na Universidade de Colonia que precederam defesa de tese sobre a música sacra em São Paulo após a independência. Esses trabalhos motivaram, levaram e fundamentaram a realização do Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira em São Paulo, em 1981, quando então fundou-se a Sociedade Brasileira de Musicologia.
Manuel Julião foi lembrado nos diálogos levados a efeito no evento de abertura dedicado à música sacra à época colonial e suas extensões nas décadas que se seguiram. Foi tratado, a seguir, no I Fórum de Música Alemanha/Brasil em 1982 e, a partir de 1985 nos trabalhos do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS), cuja fundação, em 1985, formalizou a internacionalização do Centro de Pesquisas em Musicologia fundado oficialmente em 1968.
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
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