Dom Pedro II. Neg. von Braum. Clément & Cia. Paris. Therese Prinzessin von Bayern. Meine Reise in den brasilianischen Tropen. Berlin 1897

BRASIL-EUROPA

REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA

EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS


 
MODINHAS DE SÃO PAULO


- REPERTORIOS DE GUARATINGUETÁ -





PROGRAMA

BICENTENÁRIO DE D. PEDRO II
1825-2025

Antonio Alexandre Bispo


Modinhas coletadas em cidades de São Paulo desempenharam papel relevante nos estudos musicológicos desenvolvidos em diferentes contextos regionais e urbanos desde a década de 1960. Guaratinguetá foi uma das principais cidades consideradas em  pesquisas culturais e musicais em cidades do vale do Paraíba.


A procura de modinhas e os estudos exigiram outros procedimentos do que aqueles seguidos no âmbito da música sacra e de prática de bandas. Estes constaram sobretudo de consultas de arquivos de instituições eclesiásticas e civis ou de acervos de descendentes de compositores e regentes. No caso de modinhas, a atenção foi dirigida a materiais conservados em famílias, a álbuns de cantoras e pianistas, procedendo-se também a entrevistas com pessoas de mais idade e os possuíam. Nessas coleções, modinhas foram conservadas ao lado de canções ou composições para piano, romances, recitações ou melodramas ou outras. 


O grande número de modinhas assim levantadas e estudadas permitiram reconhecer a intensidade da prática musical doméstica nas suas relações com a tradição popular em Guaratinguetá. Elas complementam o quadro histórico obtido de estudos de música sacra, de vida musical secular instrumental, de teatros e concertos, de corporações musicais desse centro mais importante da vida cultural e musical do vale, adquirindo especial significado sob aspectos sócio-culturais. Os estudos foram desenvolvidos no âmbito do Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão de São Paulo em várias viagens de pesquisas com a colaboração de músicos e pesquisadores da região. 


Os estudos tiveram prosseguimento em pesquisas realizadas por Sueli Bispo em 1973 e que foram consideradas em cursos da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo. Essa pesquisa levantou e baseou-se em coleção de peças encadernadas que permitiu distinguir a disposição de repertórios da prática familiar, constante de trechos de óperas em redução para piano e canto, peças para canto e piano e para piano só. Algumas das folhas do caderno foram utilizadas para anotações em décadas posteriores, já no início do século XX. 


Os estudos tiveram prosseguimento em âmbito internacional a partir de 1975. As modinhas foram consideradas juntamente com Maura Moreira, cantora brasileira atuante na Ópera de Colonia.


Desenvolvimento dos estudos no Brasil


O interesse por modinhas que levou a esses estudos foi despertado já em fins dos anos 50 por modinhas de A. Carlos Gomes (1836-1896) incluídas em programas de ensino de piano por professoras formadas no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Modinhas eram há muito incluídas em recitais de canto. Esse interesse intensificou-se em 1964/5 quando da inclusão da matéria Folclore nos estudos de instrumentos e canto do Conservatório Musical Carlos Gomes, então em fase de transição a instituição de nível superior. 


O responsável pela matéria, Edgard Arantes Franco, pesquisador de folclore e de tradições musicais, era cantor e professor de canto. Atuara no passado com Fernando Lobo (Marcelo Tupinambá) (1889-1953) em concertos e conferências em São Paulo e em cidades do interior, colaborando com os seus ideais de divulgação de canções tradicionais de regiões e localidades. Os estudos e o cultivo de modinhas inseriram-se entre esferas do erudito e o folclórico, basearam-se tanto em fontes musicais, na sua maioria manuscritas, que precisavam ser levantadas, como também na tradição oral, transmitida pela memória de idosos, o que exigia procedimentos próprios da pesquisa cultural empírica. 


Modinhas foram consideradas não só no âmbito dos estudos musicais como naqueles de folclore. Modinhas contribuiram assim de forma relevante à tomada de consciência da necessidade de superação de visões e concepções marcadas pela categorização de esferas do erudito e do popular que marcou os desenvolvimentos desde meados da década de 1960. Vistas como semi-eruditas ou não propriamente folclóricas ou populares por muitos, as modinhas exigiam que a atenção fosse dirigida não só ao intermediário, mas na sua inscrição em processos que ultrapassavam delimitações de esferas nos seus diferentes sentidos. Foram tratadas por pesquisadores como exemplos de aceitação coletiva, de assimilação e difusão de uma expressão artística pelo povo ou de de aproveitamento de cantos tradicionais por compositores, em desenvolvimentos por assim dizer tanto descendentes como ascendentes segundo valorações sócio-culturais. 


Essas reflexões contribuiram ao reconhecimento da necessidade de estudos dessas relações e fluxos, de propagação de uma perspectiva dirigida a processos e suas interações que passou a ser o objetivo do movimento Nova Difusão e dos estudos do Centro de Pesquisas em Musicologia. Esses estudos foram necessariamente conduzidos inter- e trans-disiciplinarmente, considerando-se as suas relações com a história e a memória. Refletiu-se que estudos que partiam de fontes impressas ou manuscritas correspondiam antes a procedimentos históricos, procedendo do passado ao presente, aqueles que partiam da pesquisa empírica de modinhas transmitidas oralmente por informantes idosos antes a procedimentos memoriais, procedente do presente ao passado através de recordações. 


Nostalgia e saudades de tempos passados, de época da juventude de informantes, marcaram sempre estudos, interpretações de modinhas, expressões e atitudes de cantores em recitais. Esses afetos corresponderam aos sentimentos de textos em geral decantados nas próprias modinhas, exemplos do romantismo nos seus diversos aspectos. Essas relações entre memória no presente de um repertório já em si marcado por memória e saudades, suas implicações nos estudos e na prática do cultivo musical deram ensejo a reflexões sobre suas dimensões sócio-psicológicas e sobre os problemas colocados aos estudos por exigir uma distância, uma pesquisa da própria pesquisa. Essa problemática foi discutida a partir de uma publicação que sempre serviu de base para os estudos e interpretações, as Modinhas Imperiais (São Paulo 1930) de Mário de Andrade(1893-1945), que já pelo seu título remete ao passado. 


O interesse pelo estudo de modinhas na história da música no Brasil foi intensificado com a inclusão de modinhas na série de discos Música na Côrte Brasileira, com os respectivos comentários, assim como com a publicação de estudo de Mozart de Araújo (1904-1988), que dirigiu mais intensamente a atenção à necessidade de consideração das modinhas no contexto mais abrangente de relações entre Portugal e o Brasil, levantando questões de origens e recepções recíprocas, o que marcou debates que se seguiram. Esse estudo acentuou também o interesse por modinhas cantadas a duas vozes, oferecendo fontes históricas de uma prática há muito constatada por folcloristas. (Mozart de Araújo, A Modinha e o Lundu no Século XVIII, São Paulo: Ricordi Brasileira 1963).


A procura e consulta de manuscritos em coleções particulares e de registros da tradição oral em São Paulo e em outras cidades e regiões possibilitaram o levantamento de considerável número de modinhas e outras obras para canto do século XIX, romances e trechos de ópera, que passaram a ser considerados em aulas e concertos. As composições foram tratadas em sessões do conservatório-sede do Centro de Pesquisas em Musicologia e, em nível superior, em cursos de História da Música e Etnomusicologia do Instituto Musical de São Paulo, motivando trabalhos de pesquisas. No decorrer de programa de estudos pelo Leste e Nordeste do Brasil, em 1972, gravações e entrevistas realizadas no litoral da Bahia contribuíram à consideração de modinhas nas suas inserções em contextos culturais e tradições regionais e locais.


Estudos de modinhas na Europa


A partir de 1975, modinhas passaram a ser objeto de estudos e apresentações no âmbito de projeto musicológico brasileiro desenvolvido na Europa a partir do Instituto de Musicologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de Colonia. Esse interesse justificou-se por diversas razões. Na ópera de Colonia atuava a cantora brasileira Maura Moreira, nascida em Minas Gerais, que no seu repertório incluía várias modinhas brasileiras e que desde então passou a colaborar intensamente com o desenvolvimento dos estudos. 


As fontes do século XIX levantadas em pesquisas no Brasil vieram ao encontro de um interesse pela reconsideração do século XIX na musicologia européia. Em andamento encontrava-se a preparação da publicação sobre as culturas musicais da América Latina no século XIX. Nos colóquios e apresentações, tratou-se de retomar e desenvolver estudos e reflexões conduzidas no Brasil em âmbito internacional a partir da orientação teórica dirigida ao estudo das inserções dessas obras em processos culturais.


A fundação do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa, em 1985, representando a formalização internacional do Centro de Pesquisas em Musicologia de São Paulo, foi seguida por recital que incluiu várias modinhas interpretadas pela cantora Neide Carvalho, representante da Sociedade Brasileira de Musicologia. O estudo da recepção de modinhas nos países europeus levou a consultas de bibliotecas e arquivos em diferentes países. 


Na Biblioteca do estado da Baviera em Munique descobriu-se manuscritos de várias modinhas transmitidas pela pianista Adolphe Le Beau (1859-1927), um fundo que passou a ser considerado sob diversos aspectos nos anos que se seguiram. Essas modinhas foram publicadas em facsimile por ocasião do I Congresso Brasileiro de Musicologia promovido pela Sociedade Brasileira de Musicologia em 1987. Os caminhos e as circunstâncias da presença dessas modinhas na Baviera e o seu pertencimento a pianista e compositora constituiu tema de estudos da mulher na musicologia e de curso sobre Gender Studies na Musicologia na Universidade de Bonn. Modinhas foram consideradas em sessões da Academia Brasil-Europa, em particular no colóquio dedicado à Canção Brasileira realizado em cooperações com o Conservatório de Colmar em 1999.


Aspectos dos estudos


Uma especial atenção nos estudos realizados no vale do Paraíba foi dedicada a modinhas e outras peças para  soprano ou meio-soprano que, manuscritas, revelando ser cópias ou registradas da tradição oral, são acompanhadas por piano ou violão. São documentos significativos da prática musical feminina na região, assim como do emprêgo do violão ao lado do piano no acompanhamento do canto. Os estudos basearam-se em obras escritas ou copiadas em diferentes épocas, o que pode ser verificado pelas diferentes tintas e caligrafias. Essas coleções revelam ter sido formadas no decorrer de décadas, nele escrevendo-se ou copiando-se composições de diferentes épocas, algumas delas não completadas. 


Algumas dessas peças inacabadas não apresentam títulos nem textos, apenas a melodia e o acompanhamento, o que revela o caminho seguido por aquele que as anotou. Este é o caso da modinha Quem sabe? de Carlos Gomes, uma redução que permaneceu incompleta, sem título e sem letra, tendo o copista interrompido o trabalho após alguns compassos iniciais.


Entre as composições mais antigas estudadas, encontram-se as  que se dirigem à Lília, que, pelo seu conteúdo de teor arcádico, permitem supor que remontem a fins do século XVIII ou início do XIX.  


A coleção inclui as seguintes modinhas com acompanhamento de violão: 



Texto:

Eu te amo e tu me amas/Teus lindos olhos não mentem (3 vezes)// Ah! meu bem a mesma chama /Nossos ternos peitos sentem (bis) //Se assim nos amamos/ só teu quero ser comtigo/ só quero viver e morrer se assim nos amamos/ so teu quero ser comtigo só quero viver e morrer.// 2) Tu dissestes que me amavas/ Eu guardei-te a fé mais pura/ Ah! não quebres por piedade/ Tua doce e terna jura. Estr: Se a juras quebrares/ Detesto o viver/Sem teu meio affecto/ Só quero morrer.



Amo-te, se isso é crime/ a culpa teus olhos tem (bis)// Tens uns olhos tão lindos/ como nunca vi em ninguém (bis)// Que olhos tão negros/ que lindos que são!/ São setas cravadas em meu coração (bis)// 2) Amo-te, não sou culpado/ Teu olhar isso causou/ Se em amar sou criminoso/ Só tem culpa quem me olhou// Estr. Que olhos tão negros (...)// 3) Amo-te, tu me despresas/ Sem de mim ter compaixão;/ Não me olhes se não queres/ Prender o meu coração// Estr. Que olhos tão negros (...)



Bella saudade,/ Mimosinha flor;/ Só tu me acompanhas no meu pranto e dor// (bis) Eu quero, quero, quero amar-te mimosinha flor/ (bis)// 2) O goivo tristonho/ Nas campas ornato/ Do meu coração/ O fiel retrato//. Estr. Só tu me acompanhas (...)// 3) A dor que eu padeço/ Exprime paixão/ Só tu tens entrada/ No meu coração// Estr. Só tu me acompanhas (...)



De ti fiquei tão escravo/ Depois que teus olhos vi/ Que vivo só por teus olhos/ Não posso viver sem ti // Contemplando o teu semblante/ Sinto a vida m‘escapar/ Num teu olhar perco a vida/ Resuscito n‘outro olhar.//Mas é tão doce viver assim/ Lilia, não deixes de olhar para mim// 2) N‘um raio dos teus olhares/ Minh‘alma inteira prendi/ Só tens minh‘alma em teus olhos/ Não posso viver sem ti// 3) A qualquer parte que os volva/ Sinto minh‘alma voar/ Ainda que livre nas asas/ Preso só n‘um teu olhar// 4) Que era meu fado ser teu/ Ao verte reconheci;/ Nada muda a lei do fado/ Não posso viver sem ti// 5) Por não ver ainda completa/ Esta doce escravidão/ Se me ferem teus olhares/ Choro sobre o meu grilhão// Estr. Mas é tão doce (...)



Quando tua voz, Lilia escuto / Renasce minha esperança/ qdo tua voz Lilia escuto/ renasce minha esperança/ Mas depois a desconfiança/ vem verir meo coração (bis) // Assim entre pena e prazer/ Passo a minha triste vida/ Ó Lilia, Lilia, querida, qto é mais doce/ mais doce morrer  (bis)// Mas se teu peito tão bem me ama/ se a mesma chamma sentes arder/ porque o cruel ciume no meu peito incendes/ porque pretendes ver-me soffrer/ mas se teu peito tão bem me amas/ se a mesma chamma sentes arder/ por que pretendes ver-me/ porque pretendes ver-me soffrer/ bis//


Quem dera que eu fosse gentil avesinha/ q‘as asas abrindo pairasse no ar./ Então eu as nuvens erguera meu voo/ quisera sereno bem longe adejar// e junto da bella que tanto adorei/ quisera ir sosinho dizer-lhe baixinho/ o quanto eu amei/ o quanto eu amei// 2) Mas eu não sou ave nem rosa ou archanjo/ Não sou mariposa nem brisa o mar/ Sou triste vivente que soffro e que gemo/ Que a vida não posso contente passar // (repete-se)



Olho e vejo tudo é gala / Tudo canta e tudo falla/ Só minh‘alma não se acalma/ Muda e triste não se rí!// Minha mente já delira/ E meu peito só suspira /(bis) Por ti! Por ti/ Ai quem me dera essa vida/ Tão bella doce vida/ Nos meus lares sem pesares/ No socêgo só d‘ali / Não tinha visto as tranças/ Nem rasgado as esperanças/ Por ti/ Por ti!/ Por ti!


Perdi as flores da idade/ E na flor da mocidade/ É meu canto todo pranto/ Qual a vos do jurity!/ No teu sorriso embebido/ Deixei meu sonho querido/ Minha mente já delira// Deixei meu sonho querido/ Por ti! Por ti! Ai se eu podesse formosa/ Roçar-te os labios de rosa/ Como as flores seus amores/ Faz o louco colibri/ Esta minh‘alma nos hymnos/ Erguera cantos divinos/ Por ti/ Por ti/ Por ti! 


Ai! assim viver não posso) Morrerei, meu Deos, bem moço/ Qual n‘aurora/ Que descora/ Desfolhado bogari/ Mas lá da campa na leira/ Será a voz derradeira/ Por ti! Por ti! (...)



Nas horas mortas da noite/ Como é doce o meditar/ Quando as estrellas scintillão/ Nas ondas quietas do mar// Quando a lua magestosa/ Surgindo linda e formosa/ Como donzella vaidosa/ Nas aguas se vai mirar/ (....)


Se eu fora poeta/ De meigo trovar/ Celeste armonia/ Quizera te dar// Estr. Contanto que tu/ Soubesses me amar/ (bis) // (....)



Si os eus suspiros voassem/ Com os meus tristes pensamentos/ E narrando os meus tormentos/ bis/ No teu coração vibrassem/ Ficarias commovida,/ Oh minha Urania querida!/

D. Pedro II. Kaiser von Brasilien. Phot. Melsenbach Riffarth München. V. Braun Clément, Paris. Da obra: Therese Prinzessin von Bayern, Meine Reisen on den Brasilianischen Tropen. Berlin D. Reimer (Erst Vohsen) 1897.

Este texto é extraido da publicação

Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.


ISBN 978-3-384-68111-9


O livro pode ser adquirido aqui

Pedro II Kaiser von Brasilien. Phot. Melsenbach Riffarth München. V. Braun Clément, Paris. Da obra: Therese Prinzessin von Bayern, Meine Reisen on den Brasilianischen Tropen. Berlin D. Reimer (Erst Vohsen) 1897.
Druck und Verteilung: Tredition. Ahrensberg