BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
Gioacchino Rossini, um dos grandes vultos da história da arte lírica, cujas obras alcançaram extraordinário sucesso nos principais centros da Europa e mesmo de outros continentes, muitas das quais permanecem no repertório operístico até o presente, considerado em vasta literatura e presente em grande número de gravações, foi compositor que, com as suas obras, marcou a vida e a criação musical no Brasil no século XIX.
A recepção e o cultivo de óperas e de composições sacro-musicais de Rossini não podem deixar de ser consideradas em estudos de desenvolvimentos histórico-musicais do século XIX e suas extensões no XX. Consequentemente, estudos de Rossini vêm sendo desenvolvidos há muito no Brasil, tendo sido conduzidos em orientação dirigida ao estudo de processos culturais desde a década de 1960 em São Paulo. Desde 1974 esses estudos foram internacionalizados, passando a ser desenvolvidos em centros musicológicos da Europa, sempre porém em estreitas cooperações com pesquisadores brasileiros. Em época marcada pelas rememorações do bicentenário de nascimento de Dom Pedro II (1825-1891), quando as atenções se voltam ao século XIX, torna-se oportuno recordar alguns aspectos desses estudos que vêm sendo desenvolvidos há mais de meio século.
Início e desenvolvimento dos estudos
Os estudos musicológicos ítalo-brasileiros referentes ao repertório operístico remontam a estudos e troca-de-idéias no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo encabeçados em 1964 pela catedrática Fausta Sermarini e o seu marido, empresário lírico. Questões então atuais relativas ao interesse pela ópera nas novas gerações, empresariais, político-culturais e de tensões internas na comunidade ítalo-brasileira, assim como de difusão popular de obras para o despertar de interesses de espectadores e conquistar um novo público determinaram encontros no conservatório e no Teatro São Paulo.
A preocupação pela situação da ópera e intentos de valorização da presença italiana em São Paulo, em particular na arte lírica, marcaram a seguir reflexões encetadas no Conservatório Musical Carlos Gomes, antiga Società Benedetto Marcelo, dirigido Armando Belardi (1898-1989), regente do Teatro Municipal e um dos principais promotores de obras de compositores italianos em São Paulo. Rossini e o significado de suas obras e de um estilo rossiniano na história da música do Brasil foi um dos tems tratados em cursos e encontros de história da música.
Nas reflexões, tomou-se consciência da necessidade de mudança de perspectivas e procedimentos, assim como de estudos mais atentos das relações ítalo-brasileiras na história da música a partir de fontes a serem levantadas. Concepções de difusão cultural, de divulgação com finalidades educativas com o objetivo de ganhar novo público passaram a ser questionadas. Não era recente a crítica a um repertório operístico marcado por repetições, pela apresentação de óperas mais conhecidas e que garantiam público, correspondendo a expectativas econômicas de empresários no financiamento das encenações.
Reconheceu-se que as reflexões deviam ser conduzidas em contextos mais amplos, superadores de separações entre grupos sociais de diferentes origens imigratórias na metrópole cosmopolita, correspondendo às mudanças decorrentes de novas gerações ítalo-brasileiras em processos de integração, em paralelos e interações com desenvolvimentos na Itália. O direcionamento da atenção a processos que transpassam delimitações e fronteiras deveria contribuir a um novo modo de pensar, de ver e proceder. A difusão desse modo de ver e proceder, transdisciplinar e voltado a contextos globais, à superação de modos de pensar em compartimentos, passou a ser escopo do movimento Nova Difusão.
Essa orientação dizia respeito tanto aos estudos culturais como àqueles mais especificamente voltados à música. Tratava-se de desenvolver estudos culturais a partir da música como princípio condutor e de estudos musicológicos orientados segundo processos em ambos os lados das relações ítalo-brasileiras. Passou-se a dar maior atenção a processos histórico-culturais e políticos na própria península itálica nas suas dimensões européias, em particular na esfera mediterrânea. A projeção de visões atuais da Itália, de uma configuração de Estado a partir da unificação nacional não devia determinar - ainda que inconsciente - os estudos de situações e desenvolvimentos anteriores. A preocupação pelo estudo da obra e da difusão de óperas de Rossinii - assim como de outros compositores - a partir de suas inserções em processos nas suas decorrências temporais marcou desde então os estudos ítalo-brasileiros assim orientados.
No âmbito dos estudos conduzidos no Centro de Pesquisas em Musicologia da Nova Difusão, o interesse voltou-se aos processos históricos que explicavam esses elos, à atuação de músicos italianos em Portugal e no Brasil e, sobretudo, à difusão de obras de compositores italianos no Brasil.
Tomou-se consciência de que o interesse de pesquisadores no levantamento e na consulta de fontes não deve limitar-se a descobrir nomes e obras de músicos brasileiros. A consideração de obras executadas no passado em cidades do Brasil é fundamental para estudos de recepção musical, de caminhos de difusão e de suas implicações na produção musical brasileira.
De fundamental significado para os estudos referentes à recepção de obras de Rossinii no Brasil foi o levantamento realizado por Ayres de Andrade das óperas levadas em cena no Rio de Janeiro entre 1808 e 1865. (Francisco Manuel da Silva e seu tempo II, 1808-1865:; Uma fase do passado musical do Rio de Janeiro à luz de novos documentos, 2 vols. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1967, 121 ss.).
Segundo os seus registros, a primeira obra apresentada foi o drama sério Aureliano em Palmira, composta em 1813, quando Rossini tinha apenas 21 anos, levada no Teatro São João em 1820. Seguiram-se, em 1821, o Barbeiro de Sevilha, La Cenerentola, Italiana in Algeri e Tancredo. Elisabetta regina d’Inghilterra e Adelaide de Borgogna foram apresentadas em 1823. Em 1824, levou-se a farsa L’inganno felice no S. Pedro de Alcântara. Em 1826, representou-se Adina no mesmo teatro; em 1827, La pietra del paragone, seguindo-se em 1828 Otello, também no mesmo teatro. Em 1829, ali levou-se Matilde de Shabran (1821). Em 1830, representou-se La gazza ladra e, em 1844, La dama del Lago. Em 1847, encenou-se Semiramide e, em 1848, Bianco i Falliero, também no São Pedro de Alcântara. Em 1850, encenou-se Guillaume Tell no teatro São Januário e, em 1858, Mosè in Egitto no Lirico Fluminense.
Esse levantamento aguçou a atenção ao número de óperas de Rossini representadas nos anos que imediatamente antecederam a Independência e naqueles que a sucederam. Considerou-se que essa popularidade da música de Rossini não podia ter deixado de deixar marcas na linguagem musical de compositores brasileiros. Analisou-se, sob este aspecto, a sinfonia Eduardo e Cristina em cotejo com o Hino Nacional de Francisco Manuel. A época principalmente marcada por Rossini foi a dos anos 20 do século XIX. Quase todos os anos apresentaram-se obras suas. A partir de 1830, quando se executou La gazza ladra, constata-se uma diminuição de apresentações operísticas, o que é compreensível considerando-se o período difícil economicamente pelo qual a nação passou. As atividades intensificaram-se na década de 1840, marcada porém já por um predomínio de obras de Donizetti.
Rossini foi objeto de particular atenção no ano em que se rememorou 100 anos de seu falecimento em 1968, ano da oficialização do Centro de Pesquisas em Musicologia. As composições sacro-musicais de Rossini foram focalizadas em estudos da influência da ópera na prática musical de igrejas criticadas no âmbito do movimento restaurador do século XIX, vista como sintoma de decadência da música sacra e da teatralização da celebração litúrgica.
Em 1971, esta argumentação foi tratada e refutada em colóquios realizados em São João del Rei. Motivo das reflexões foi a interpretação do Stabat Mater de Rossini durante os ofícios da Semana Santa por solista e Orquestra Ribeiro Bastos sob a regência de Pedro de Souza.
Entre as fontes levantadas em pesquisas em arquivos de São Paulo e do ínterior, destacou-se a sinfonia Eduardo e Cristina de Rossini, abertura da ópera de mesmo nome em dois atos, levada a cena em 1819 no Teatro San Benedetto de Veneza. Essa sinfonia fez parte da repertório de cidades do vale do Paraíba no século XIX. Ela dá testemunho da recepção da obra de G.. Rossini no interior de São Paulo já na primeira metade do século XIX, assim como da tradição sinfônica em centros musicais de cidades do vale do Paraíba como Taubaté, São Luís do Paraitinga, Guaratinguetá e Cunha. Essa sinfonia, com as exigências que colocam para os instrumentistas, o que se evidencia sobretudo no tratamento das partes de violino, é um dos principais documentos que indicam a existência de violinistas capazes e a continuidade de uma tradição de cordas e sinfônica na vida musical em cidades da região.
Uma das reflexões encetadas disse respeito ao conhecimento do conteúdo da ópera, embora esta não teria sido levada em cena nas localidades em que a obra foi executada no interior do Brasil. Lembrou-se que esta ópera se baseava em libretto de Giovanni Schmidt (ca.1775-1839), libretista oficial do Teatro di San Carlo de Nápoles. O libretto Odoardo e Cristina teria sido escrito para uma ópera de Stefano Pavesi (1779-1850), sendo reelaborado a seguir Andrea Leone Tottola (1750-1831) e Gherardo Bevilacqua-Aldobrandini.(1791-1845).
Em nível superior, a sinfonia Eduardo e Cristina foi considerada em cursos da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo em 1973 e 1974. A principal razão dessa atenção foi a descoberta de partes dessa sinfonia em acervos de cidades da Bahia e do Nordeste do Brasil no decorrer de viagem de pesquisas realizada em 1972. Essa sinfonia, adaptada, pertenceu ao repertório de bandas de música de cidades do litoral da Bahia como Belmonte, e Feira de Santana. Foi encontrada em acervos de outras regiões, em Sergipe e Alagoas, documentando uma vasta difusão e popularidade. Diferentemente das partes encontradas em São Paulo, aquelas da Bahia e de outras localidades eram em geral re-instrumentadas de acordo com as possibilidades locais de corporações para instrumentos de sopro.
Internacionalização dos estudos
Gioachino Rossini foi compositor considerado em projeto de estudos musicológicos e culturais desenvolvido a partir de 1974 na Europa. Esse projeto teve como escopo contribuir ao desenvolvimento de uma musicologia orientada segundo processos culturais em contextos globais e, reciprocamente, de estudos culturais tendo a música como princípio condutor. Os trabalhos partiram de documentos levantados em pesquisas realizadas no Brasil, dando sequência, em nível internacional, a estudos em andamento desde a década de 1960 no Brasil. O projeto foi realizado com o apoio do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) sendo sediado no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia.
Os estudos de Rossini e sua obra - assim como de outros compositores italianos - foram favorecidos pelo empenho de Karl-Gustav Fellerer (1902-1984) em promover as relações ítalo-alemãs na pesquisa, fomentado o estabelecimento de contatos e intercâmbios.
Como então discutido, o Brasil podia contribuir a essa intensificação de relações internacionais nos estudos musicológicos através de uma ampliação de perspectivas na condução desses intuitos e esforços. O extraordinário significado das relações ítalo-brasileiras na história da música, do papel desempenhado por músicos italianos na vida musical e no ensino no Brasil, na música sacra, na ópera, no canto e na música instrumental e não por último nos estudos histórico-musicais através de uma obra como a Storia della Musica nel Brasile de Vincenzo Cernicchiaro, publicada em Milão em 1926, levavam a uma abertura de visões, a novos questionamentos e procedimentos. Em 1975 e 1976, realizaram-se ciclos de estudos em cidades da Itália pelos 50 anos do término e da edição dessa obra.
A promoção dos estudos musicológicos em relações ítalo-alemãs não podia deixar de considerar não só músicos italianos em outros países europeus no decorrer dos séculos como também aqueles que atuaram em outros continentes. Estudos nesse contexto global não podiam deixar de considerar músicos de outros países que desenvolveram estudos e fizeram carreira em centros italianos, lembrando-se entre outros, sobretudo do brasileiro Antonio Carlos Gomes (1836-1896).
Essa ampliação do campo de estudos e de interações entre pesquisadores exigia que se superasse visões orientadas segundo estados nacionais nas suas configurações atuais, dirigindo a atenção a outras constelações políticas e contextos no passado. Entre eles, Nápoles e o reino das Duas Sicílias, nas suas diferentes configurações de Estado necessitavam ser considerados nas suas estreitas relações com a Península Ibérica, em particular com Portugal e, assim, a suas antigas colonias. Podia-se lembrar da presença de músicos como Domenico Scarlatti (1685-1757) em Lisboa, do papel desempenhado pela música sacra napolitana no Seminário da Patriarcal de Lisboa, da formação e atuação de músicos portugueses em centros da península itálica como Marcos Antonio Portugal (1762-1830). Essas constatações exigiram a participação de pesquisadores portugueses no projeto brasileiro.
Os estudos de G. Rossini nas suas relações com o Brasil foram desenvolvidos na Europa sobretudo no contexto do interesse por reconsiderações do século XIX na musicologia alemã em 1975, assim como pela intensificação de cooperações com pesquisadores italianos, o que suscitou estudos e encontros na Itália.
A abertura de visões para contextos globais nos estudos musicológicos referentes à Itália não podia deixar de considerar a imigração italiana aos EUA, aos países latino-americanos e, em particular, ao Brasil. Essa constatação do significado das ondas migratórias italianas foi um dos fatores que levaram a uma concentração dos estudos no século XIX. Os estudos necessitavam ser conduzidos interdisciplinarmente, uma vez que as regiões extra-européias, na ordenação dos estudos musicológicos, cabia à Etnomusicologia. Encontrava-se em andamento no instituto significativamente um projeto dedicado às culturas musicais na América Latina no século XIX.
Importantes momentos dos estudos referentes ao século XIX foram motivados em 1976 pela celebração do centenário da Casa de Festivais de Bayreuth, que contou na sua inauguração com a presença de Dom Pedro II, assim como os Dias da Música em Kassel (Kasseller Musiktage), que dirigiu a atenção a processos de recepção musical. A atenção a processos receptivos nos estudos da música em contextos globais marcou os estudos nas décadas que se seguiram.
A partir da fundação do Instituto de Estudos da Cultura Musical no Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS) em 1985, s recepção da obras de compositores italianos como G. Rossini em Portugal e em regiões marcadas pelos portugueses no século XIX foram tratados em cooperações e.o. com o pesquisador português Manuel Ivo Cruz (1935-2010) em diversas ocasiões e contextos. G. Rossini foi sobretudo considerado em trabalhos referentes ao século XIX no Brasil do projeto Music in the Life of Man do ICM/UNESCO, discutido no encontro regional da América Latina e Caribe no âmbito do I Congresso Brasileiro de Musicologia em 1987.
G. Rossini nas suas relações com o Brasil foi considerado em cursos nas universidades de Colonia e Bonn a partir de 1997. Foi tratado sob o aspecto dos estudos musicológicos em interações culturais em processos históricos em contextos globais e ao tema foi dedicada um curso sobre o Clássico e o Romântico na História da Música na Universidade de Bonn em 2003.
68: Centenário da morte de Rossini e renovação musical. L’Insieme di Firenze ➢
Italianità, Deutschtum e Paulistanidade no centenário de Carlos Gomes em 1936. O festival do Instituto Musical de São Paulo no Club Germania ➢
Exulta, Oh Brasil!. Saverio Mercadante (1795-1870) suas obras e seus discípulos no Brasil e sua aluna brasileira Heloísa Marechal (?-1860) ➢
Hedy Iracema-Brügelmann (Hänsel) (1881-1941) ➢
Brasil e Itália na música para piano do século XIX. Fantasias de óperas e sentimentos identitários ➢
68: Ópera italiana em São Paulo: Questões de renovação e exigências de público. Armando Belardi (1900-1989) ➢
Henri/Henry Ketten (1848-1883) e Henri/Henry Oswald (1852-1931) sob o signo de Hans von Bülow (1830-1894) em contextos internacionais do virtuosismo pianístico do século XIX ➢
Latinidade e Estética em Carlos Gomes (1836-1896) segundo Vincenzo Cernicchiaro (1858-1928) ➢
Oscar Pfeiffer (1858) ➢
Lago de Como e Brasil ➢
Estudos sócio-culturais: bases para a pesquisa de corporações musicais ➢
Francisco de Andrade (1856-1921) ➢
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
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