BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
Theodoro Cyro/Teodoro Ciro, sacerdote e compositor, foi um dos mais importantes músicos portugueses que atuaram no Brasil em fins do século XVIII e primeiras décadas do século XIX. Como mestre-de-capela da catedral de Salvador, a primeira sé do Brasil, cidade que foi até 1763 capital da colonia, Theodoro Cyro desempenhou papel relevante na música sacra da Bahia e do Nordeste do Brasil. A sua consideração é indispensável para os estudos musicológicos não só do Brasil como também de Portugal.
A consideração do Pe. Theodoro Cyro no Brasil iniciou-se no âmbito de projeto de estudos culturais luso-brasileiros conduzidos com especial consideração da música em São Paulo na primeira metade da década de 1960. Esses trabalhos partiram de entrevistas com imigrantes e seus descendentes, contaram com o apoio de intelectuais e artistas portugueses e luso-brasileiros e foram acompanhados por procura e consultas de fontes. Esses trabalhos tiveram continuidade no âmbito do movimento Nova Difusão e do seu Centro de Pesquisas em Musicologia, formalmente fundado em 1968.
Nos estudos voltados a Portugal e às relações entre Portugal e o Brasil, passou-se a considerar com especial atenção músicos e compositores portugueses que atuaram no Brasil não só na época colonial, como também nos anos marcados pela vinda da família real, do Reino e nas décadas que se seguiram à Independência. A permanência de músicos portugueses no Brasil independente, assim como a vinda de músicos de Portugal sob as novas situações políticas e político-culturais passaram a ser objeto de estudos.
A atenção foi ao Pe. Theodoro Cyro foi despertada por referência no Dicionário Musical de Ernesto Vieira (1948-1915) (Diccionario Biographico de Músicos Portuguezes e Bibliografia da Música em Portugal, 2. Vols. Lisboa: Mattos Moreiro e Pinheiro, 1900 (Diccionario Musical, 1890, II, 342).
Segundo os dados oferecidos por Ernesto Vieira, Theodoro Cyro nasceu em Caldas da Rainha, em 1766. Com apenas seis anos e meio de idade, entrou em 1772 no Seminário da Patriarcal em Lisboa, recebendo ali formação. O livro de matrículas do Seminário registra a sua inscrição. Nesse livro de matrículas anotou-se posteriormente que o seminarista tinha partido para o Brasil no dia 26 de outubro de 1781. ou seja, muito jovem, com apenas 15 anos de idade. Essa nota registra também que já possuía sólida formação teórico-musical, mencionando ter ciência de música, de acompanhamento e contraponto. Já atuava como compositor, tendo deixado algumas obras que estavam conservadas no arquivo da Sé de Lisboa. Apesar de sua juventude, tinha sido destinado a ser mestre-de-capela da cidade da Bahia, tendo sido a sua ida e viagem patrocinada pelo rei D. Pedro III (1717-1786).
Essas referências de Ernesto Vieira suscitaram estudos e reflexões. O fato de ter estado sob o patrocínio de Dom Pedro III, pai de Dom João VI (1767-1826) mereceu particular atenção em estudos voltados a processos em contextos globais, o que era escopo do movimento Nova Difusão e do seu Centro de Pesquisas em Musicologia. Esses estudos partiram daqueles de Fr. Pedro Sinzig sobre a Música Sacra em Portugal, baseados naqueles de Mário Sampaio Ribeiro (1898-1966) e publicados na revista Música Sacra em Petrópolis (e. Ano XII, 1952, 13,56,96, 151,191,233).
Pedro III, quarto filho de D. João V (1689- 1750) e de Maria Anna da Áustria (1683-1754), subiu ao trono após o seu irmão José I (1714-1777), pelo fato deste não ter herdeiros masculinos. Casando-se com a sua sobrinha Maria, em 1760, os negócios do governo foram conduzidos sobretudo pela rainha, dedicando-se Pedro sobretudo a assuntos religiosos. Profundamente piedoso, suspendeu várias das medidas anti-clericais da época de Dom José I (1714-1777) e do seu primeiro ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal (1699-1782) nas suas implicações para o Brasil.
O patrocínio do jovem Theodoro Cyro na sua ida ao Brasil para assumir o cargo de mestre-de-capela da Bahia por Dom Pedro III deve ser considerado no contexto dessa intensificação religiosa de cunho restaurativo que se seguiu aos anos marcados por correntes do Iluminismo em Portugal e as medidas do Marquês de Pombal, entre elas a da expulsão dos jesuítas. O reconhecimento do significado dos estudos dessa corrente restaurativa para os estudos portugueses e brasileiros, também sob o aspecto da música, determinou os trabalhos seguintes realizados no Brasil e na Europa.
Essa proteção de Dom Pedro II ao jovem Theodoro Cyro indica que este, desde a mais tenra idade formado no seminário, destacava-se pela sua piedade, preparação teológica de orientação conservadora, sendo visto pelo rei como particularmente apto para a sua atuação na sé catedral da Bahia, a mais importante do Brasil. Devia contribuir segundo esse raciocínio a uma reforma restaurativa do culto e da vida religiosa, cultural e moral da antiga capital, contrariando tendências iluministas e medidas anti-clericais e sobretudo anti-jesuíticas decorrentes da política da época do Marquês de Pombal.
O envio de Theodoro Cyro à Bahia como mestre-de-capela surge como importante ato a ser considerado em estudos de correntes religiosas restaurativas que se sucederam à época de Dom José I e do Iluminismo, marcadas pela ação de Dom Pedro III e assim de uma época que marcou a formação de Dom João VI e que, em alternância geracional, se diferenciou de seu pai sob vários aspectos.
A partitura manuscrita da Semana Santa de Theodoro Cyro, para coro e grande orquestra, foi encontrada na cidade de Penedo, Alagoas. Os manuscritos provinham de Alagoinhas, na Bahia, cidade não muito distante de Salvador, centro de vias de ligação entre a capital e o interior, considerada como portal do sertão, importante mercado e centro de intercâmbios. A obra foi ali copiada e reinstrumentada por José da Luz Passos, músico e regente da igreja de Alagoinhas em 1897.
A partitura registra explicitamente ser obra do Pe. Theodoro Cyro. A presença da obra do mestre-de-capela de Salvador em Alagoinhas e na região do São Francisco a ampla difusão de sua obra e a influência de sua produção musical em vasta região.A obra documentou estreitos contatos e intercâmbios de partituras entre a Bahia e outras regiões,salientando-se em particular elos entre Alagoinhas e Penedo, principal centro religioso, comercial, cultural e musical do São Francisco.
O achamento da obra foi considerado em encontro realizado nos Seminários de Música da Universidade Federal da Bahia. Em São Paulo, a Semana Santa foi tratada em conferências e aulas da Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo. Foi analisada em cursos de pós-graduação em História da Música e no Centro de Pesquisas Histórico-Musicais então criado no Instituto Musical de São Paulo. Procurou-se reconstruir a versão origina a cappella dos Motetos dos Passos, uma vez que teriam permanecido na tradição de procissões de Sexta-Feira Santa em diferentes cidades. Publicou-se uma edição desses Motetos, então estudada e executada pelo Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista.
A partitura, para vozes e grande orquestra, foi analisada sob o aspecto estilístico da linguagem musical nas suas relações com os textos tratados, atentando-se em particular ao estilo antigo de seus motetes e ao estilo moderno ou misto de outras de suas partes. Considerou-se sobretudo o fato da obra ter sido reinstrumentada por José da Luz Passos, importante e erudito músico de Alagoinhas. Essa reelaboração surgiu como surpreendente em época marcada pela intensificação de correntes restaurativas na música sacra.
O descobrimento da obra adquiriu significado por ser de um compositor que teria vindo para a Sé de Salvador sob o patrocínio de um rei que procurou de forma reacionária contrariar processos da época do Iluminismo o que foi reconhecido como de importância para estudos difusão cultural nas suas inserções políticas e em ideários, de continuidades e tradições.
A necessidade de levantamento de fontes e de estudos de músicos portugueses que atuaram no Brasil mesmo após a Independência foi discutida com o compositor português Jorge Peixinho em conferências no Paraná e em São Paulo nas suas relações com a renovação de estudos musicológicos luso-brasileiros. A revisão de perspectivas e a procura de novos rumos para a pesquisa impunham-se na situação crítica e de mudanças políticas e político-culturais em Portugal à época de guerras nas antigas colonias na África. O levantamento tão amplo quanto possível de fontes no Brasil devia ser acompanhado por estudos a serem conduzidos em cooperações internacionais a partir de encontros em Portugal.
O reconhecimento do significado da obra para os estudos musicológicos, não só da Bahia, e a necessidade de pesquisas mais aprofundadas da vida e obra de Theodoro Cyro foram fatores que levaram à realização do programa luso-brasileiro de estudos e contatos em Portugal em janeiro de 1974. A Semana Santa do mestre-de-capela da Bahia foi considerada em encontros realizados em Lisboa, Coimbra e Porto. A obra foi comparada na sua linguagem musical com aquela de fontes consultadas em acervos da Beira Baixa, em particular na da Filarmónica de Tinalhas.
Nesses encontros, salientou-se o desideratum - e a necessidade - de estreitamento de laços entre pesquisadores de Portugal e do Brasil, reativando relações já há muito existentes sob novas perspectivas teóricas que se impunham perante as decorrências político-culturais de uma época de crise.
Os estudos luso-brasileiros não deviam porém limitar-se a relações entre Portugal e o Brasil, exigindo ser conduzidos em contextos globais com a participação de musicólogos e pesquisadores culturais de outros países, em particular também aqueles voltados aos estudos de música sacra. Lembrou-se sobretudo de pesquisadores portugueses que realizavam estudos em outros centros europeus, entre eles a professora de História da Música do Conservatório Nacional de Lisboa, Maria Augusta Alves Barbosa (1912-2012), que há anos desenvolvia estudos a partir do Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia. O fato de pesquisadores desse instituto já se encontraram em relações com as áreas de História da Música e Etnomusicologia do Instituto Musical de São Paulo favoreceu que essa universidade fosse escolhida para sediar o projeto musicológico.
Os estudos conduzidos a partir de Colonia em 1975 inseriram-se em projeto elaborado no Brasil e que teve como escopo contribuir ao desenvolvimento de uma musicologia orientada segundo processos em contextos globais e, reciprocamente, a estudos culturais a partir da música como princípio condutor. Neles participaram, além dos pesquisadores portugueses então atuantes na Alemanha, musicólogos alemães e de outros países, salientando-se Karl Gustav Fellerer (1902-1984), que se dedicou a estudos referentes a Portugal à época de Dom João V (1689-1750), retomando-se neste sentido estudos conduzidos no Brasil por Pedro Sinzig (op.cit.).
Os estudos do Pe. Theodoro Cyro e de sua Semana Santa despertaram particular atenção por virem ao encontro do interesse pelo século XIX nos estudos musicológicos, sobretudo naqueles referentes à música sacra. Em época marcada por intentos renovadores e questionamentos decorrentes de mudanças litúrgico-musicais desencadeadas pelo Concílio Vaticano II, em particular em países extra-europeus, a atenção voltava-se - como já anteriormente no Brasil -, à revisão de concepções e práticas que tinham até então vigorado e que se revelavam como remontantes ao século XIX e suas extensões no XX, cujo principal marco foi o Motu Proprio de Pio X (1903).
A necessidade de reconsiderações críticas de movimentos restauradores do século XIX, tornou-se atual em 1975 no âmbito de debates sobre a referenciação segundo Palestrina e a época tridentina através dos séculos e, em particular, sobre as perspectivas e procedimentos do Cecilianismo no século XIX. A consideração da época de Dom Pedro III em Portugal nas suas implicações na formação musical no Seminário da Patriarcal e em desenvolvimentos no Brasil abria perspectivas à consideração de desenvolvimentos anteriores de cunho restaurativo ao movimento restaurativo do século XIX. Essas considerações tinham dimensões político-culturais e de crítica de ideários, uma vez que dizia respeito a tendências anti-iluministas e anti-secularizadoras.
O movimento de restauração nda música sacra não devia ser considerado como se tivesse sido original do século XIX, que tivesse partido do nada, mas sim como uma intensificação, ainda que diferenciada nas suas expressões, de tendências e desenvolvimentos reacionários já há muito em vigor.
Essa necessidade de reconsiderações do século XIX dizia também e sobretudo respeito a estudos musicológicos de regiões extra-européias, o que se expressava em projeto em andamento sobre a música na América Latina no século XIX. Nesse projeto atuavam pesquisadores de diferentes países latino-americanos. Um dos colaboradores desse projeto, então encarregado de textos referentes ao Brasil foi Francisco Curt Lange (1903-1997), com o qual, no convívio e trabalho conjunto durante as suas estadias na Alemanha, tratou-se dos estudos referentes a Theodoro Cyro e ao Seminário da Patriarcal desenvolvidos no Brasil e no primeiro ciclo de estudos luso-brasileiros levados a efeito em Portugal em 1974.
Motivado por esses debates, Curt Lange passou a dirigir a sua atenção mais acentuadamente a estudos luso-brasileiros, o que teria expressão em publicações posteriores. Consultando passaportes de passageiros que tinham partido para o Brasil, entre eles alunos do Seminário da Patriarcal, pôde encontrar alguns pormenores adicionais àqueles já fornecidos por Ernesto Vieira. Registrou assim que os seus pais foram Joaquim de Souza e Juliana Thereza, que o seu batismo deu-se na Freguesia de Santa Maria do Postulo e que entrara no Seminário no dia 14 de março de 1767, diferentemente do ano de 1766 mencionado por Ernesto Vieira (Pesquisas Luso-Brasileiras, 1a. Parte, Portugal 1583-1855 II), Barroco, Belo Horizonte 11, 1981, 71-142, 87).
Os estudos voltados à reconsideração do século XIX na musicologia tiveram prosseguimento em debates conduzidos no âmbito dos estudos do ano Wagner pelo centenário da Casa dos Festivais em Bayreuth e nos Dias da Música de Kassel. (Kasseler Musiktage), em 1976. Nesses eventos, a atenção foi dirigida a questões de recepção musical. Essa interesse por questões de recepção vinham ao encontro daqueles voltados a processos de difusão musical que levou ao movimento Nova Difusão em São Paulo e no qual a nova difusão dizia respeito à propagação de novos modos de pensar e proceder através da superação de divisões disciplinares marcadas por categorizações de campos de estudos e esferas.
A atenção a processos receptivos passou a marcar a condução de estudos voltados à música sacra, dirigindo a atenção aos pressupostos culturais da recepção de tendências e obras em países extra-europeus. A consideração de processos receptivos em concepções e práticas da música sacra no Brasil foi tema de texto condutor de debates do Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira, realizado em São Paulo, em 1981, no contexto do qual fundou-se a Sociedade Brasileira de Musicologia (SBM).
A questão das dimensões político-culturais de movimentos reativos contra processos esclarecedores nos séculos XVIII e XIX sempre levantada nos estudos de Theodoro Cyro por ter sido patrocinado por Dom Pedro III foi retomada em debates conduzidos com o pesquisador Thomas Freund (1958-2019), estudioso do Iluminismo português, seu tratamento historiográfico e suas consequências. Esses debates levaram a reflexões que foram condutoras da série de fóruns multilaterais de musicologia e educação aberta com o Fórum de Música Alemanha/Brasil levado a efeito na Alemanha em 1982 juntamente com a Sociedade Brasileira de Musicologia.
No segundo número do seu Boletim, a SBM publicou em separata os Os Motetos para os Passos da Procissão do Senhor da Semana Santa de Theodoro Cyro. Nela salientou-se que não só os motetos sob a perspectiva dos estudos do estilo antigo já tratados em São Paulo em 1973, mas que toda a Semana Santa mereceria, sob vários aspectos, uma análise mais profunda.
Chamava-se porém mais uma vez a atenção de pesquisadores do Brasil e de Portugal para um compositor que revelava, na obra publicada, a sua sólida formação, o domínio teórico e da linguagem musical de seu tempo. Essa publicação correspondeu ao significado da consideração desse mestre-de-capela da Bahia em encontros realizados em 1980. Embora não tendo proporcionado novos conhecimentos significativos, os estudos luso-brasileiros de Curt Lange publicados em 1981 foram mencionados no estudo publicado pela SBM.
O compositor e a obra foram considerados em várias contextos nos anos seguintes, em eventos e projetos do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa a partir de 1985, no Ano Mozart de 1991, em novas pesquisas realizadas em Portugal e sobretudo na série de cursos dedicados ao tema Música no Encontro de Culturas e História da Música em Contextos Globais das universidades de Colonia e Bonn. Em 2001/2, Theodoro Cyro foi tratado no colóquio internacional Dimensões Européias da Musica de Portugal realizado pela celebração do Porto como Capital Européia da Música.
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
O livro pode ser adquirido aqui