BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
Carlo Giuseppe ou Carl Joseph Toeschi (1731-1788), músico da orquestra da Corte de Mannheim no Palatinado, violinista e compositor que alcançou renome nos grandes centros europeus através de suas viagens e atuações, foi objeto de estudos desenvolvidos em São Paulo desde a década de 1960 e que tiveram prosseguimento na Europa a partir de 1974.
Esses estudos foram desenvolvidos em cooperações internacionais no âmbito de projeto que tinha como objetivo contribuir ao desenvolvimento de estudos musicológicos orientados segundo processos culturais em contextos globais e, reciprocamente, de estudos culturais de condução musicológica.. O projeto foi realizado com o apoio do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD).
Os estudos foram sediados no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia e desenvolvido em cooperação com outras instituições e pesquisadores. Foram conduzidos conjuntamente com a musicóloga portuguesa Maria Augusta Alves Barbosa (1912-2012), além de pesquisadores latino-americanos atuantes em projeto editorial sobre culturas musicais na América Latina no século XiX então em andamento.
Os trabalhos partiram de fontes descobertas no Brasil na década de 1960, dando continuidade a estudos desenvolvidos no Centro de Pesquisas em Musicologia do movimento Nova Difusão em São Paulo. Entre as obras levantadas, destacavam-se aquelas que documentavam a recepção musical de compositores da Escola de Mannheim no Brasil do século XVIII e sua permanência na vida musical no século XIX.
Uma sinfonia de Carlo Giuseppe Toeschi - designado como José Toeschi em português - encontrada em pesquisas de fontes no vale do Paraíba despertou extraordinário interesse em círculos musicológicos alemães. Em 1975, Heinrich Hüschen conduzia uma curso sobre W. A. Mozart e sua época, nele considerando com atenção compositores e obras de Mannheim no século XVIIII nos seus pressupostos, nas suas inserções contextuais, nas suas atuações européias que ultrapassaram fronteiras e no seu significado. A difusão de obras de Toeschi e de Stamitz no Brasil surgia como de grande relevância para estudos de processos histórico-culturais em contextos globais.
Esses estudos levaram em 1975 a consultas de arquivos e bibliotecas, assim como a trabalhos em Mannheim, o que se repetiria nas décadas seguintes. Em 1976, a recepção de obras de compositores de Mannheim no Brasil e sua permanência na vida musical foi considerada no âmbito dos Dias da Música em Kassel (Kasseler Musiktage), quando se tratou da necessidade de estudos mais diferenciados do século XIX na pesquisa musical.
A obra de Toeschi foi estudada em várias outras ocasiões, lembradas em colóquios e simpósios. Foi tratada com o musicólogos que se destacaram na pesquisa do século XVIII. A obra foi objeto de atenção no ciclo dedicado à História da Música em contextos globais na Universidade de Colonia em 1997, assim como nas preleções sobre a música no século XIX realizadas no auditório da Universidade de Bonn em 2003.
No âmbito de estudos de História da Música em São Paulo, tomou-se consciência, na década de 1960, da necessária renovação de perspectivas nos estudos históricos e culturais, o que teve a sua expressão no movimento Nova Difusão e no seu Centro de Pesquisas em Musicologia. O direcionamento da atenção a processos, também àqueles que transpassaram épocas, marcou reflexões e estudos.
As reflexões histórico-musicais e os estudos culturais de tradições levaram a questionamentos de modos de pensar segundo compartimentos, de periodizações orientadas por datas da história política, de categorizações de esferas do erudito e do popular e de delimitações de áreas regionais e de grupos nos estudos e pesquisas. Essas reflexões foram discutidas em encontros com estudantes, historiadores e pesquisadores, também aqueles voltados ao século XVIII e início do XIX como Cleofe Person de Mattos (1913-2002). Problemas de metodologia e periodização histórica foram tratados em cursos de História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da Universidade de São Paulo em 1969.
A temática teve a sua maior expressão no Festival Barroco do movimento Nova Difusão e do Departamento de Cultura do Município de São Paulo em 1970, quando, discutindo-se os problemas de conceituações do Barroco Musical e de Música Colonial discutiu-se a questão de que obras com características pré-clássicas ou clássicas eram consideradas indiferenciadamente como expressões do Barroco.
Nas pesquisas de acervos realizadas no âmbito do Centro de Pesquisas em Musicologia desde meados da década de 1960 tinha-se descoberto em cidades do vale do Paraíba obras que documentavam a recepção de obras da Escola de Mannheim em São Paulo no século XVIII.
Nesses estudos, tomou-se consciência que uma Sinfonia para dois violinos, viola e baixo de Carl Joseph Toeschi, conservada em acervos de membros da Nova Difusão provenientes de famílias de músicos do vale do Paraíba constituía uma fonte documental de extraordinário significado para os estudos musicológicos de São Paulo e mesmo do Brasil.
Pelas anotações nas partes, essa obra tinha pertencido ao repertório de Manuel Gonçalves Franco, músico de Guaratinguetá, também possuidor de obras de Stamitz e de outros compositores de sua época. Esta foi uma das obras que revelaram de forma pioneira o significado para a pesquisa histórico-musical de São Paulo e mesmo do Brasil de Manuel Gonçalves Franco, músico até então desconhecido. Essa e outras obras davam testemunho dos conhecimentos de Manuel Gonçalves Franco, fazendo-o surgir como uma personalidade de sólida formação musical e erudição que acompanhava tendências contemporâneas da música na Europa. Conhecido simplesmente como Franco, Manoel Gonçalves foi um agente de processos difusivos, uma vez que obras de sua propriedade foram copiadas e mantiveram-se na prática musical de outras cidades da região. Essa e outras obras revelavam necessariamente o alto nível da prática instrumental, em particular da tradição violinística em Guaratinguetá e em outras cidades do vale do Paraíba.
O significado de Guaratinguetá e outras cidades da região explica-se pelo fato de situarem-se no caminho do comércio do ouro extraído em Minas Gerais, fundamento do florescimento material e sócio-cultural de locais de pouso e de intercâmbios. Esse trajeto era não só de saída como de entrada, não só de exportação de ouro e de produtos, como de recepção cultural, de informações e bens.
As partes trazem a indicação de José Toeschi, ou seja, não de Giuseppe ou Joseph Toeschi, o que revela terem sido vindas de Portugal. A sua presença em cidades como Guaratinguetá, então florescentes pelo comércio do ouro extraído em Minas Gerais, é assim de relevância para estudos concernentes à música em Portugal, comprovando a recepção de obras divulgadas por casas editoriais e pelo comércio de partituras, em particular através de Paris. Surgem como mais um indício da necessidade de considerações mais diferenciadas quanto a caminhos difusivos e receptivos da sempre salientada influência italiana na música de Portugal.
Com o seu irmão, Johann Baptista Toeschi (1735-1800), Carl Joseph pertencia a uma família de músicos de proveniência italiana. O seu pai, Alessandro Toeschi (ca. 1700-1758), foi primeiro violino da orquestra da orquestra da Corte do Príncipe Eleitor Carl Theodor (1724-1799). Nela, desempenhara papel condutor como diretor da música instrumental Johannes Wenzel Stamitz (Johann Stamit, Jan Stamic( (1717-1757), proveniente da Boêmia, violinista e compositor, músico que dominava vários instrumentos. Foi mestre de seus filhos e outros músicos, levando a orquestra a um alto nível qualitativo, fazendo com que se tornasse conhecida em toda a Europa.
Com Stamitz, Alessandro Toeschi contribuiu decisivamente ao aperfeiçoamento da prática instrumental, sobretudo de instrumentos de corda, da música orquestral, preparadora de desenvolvimentos que teriam a sua expressão na obra sinfônica dos grandes compositores considerados como clássicos e na música orquestral do século XIX. Os filhos de A. Toeschi, já nascidos no Palatinado, pertenceram a uma segunda geração, formada sob interações de tradições centro-européias e itálicas.
Adquiriram a sua formação na prática orquestral, entrando jovens na orquestra, tendo como mentores Johann Stamitz até a sua morte deste em 1757, à qual se seguiu a de Alessandro Toeschi em 1758. Esses músicos já nascidos no Palatinado foram agentes da irradiação da prática e do repertório de Mannheim em outros centros europeus.
Assim como Carl Philipp Stamitz, também Carl Joseph Toeschi realizou viagens e atuou nos grandes centros europeus. Carlo Giuseppe, já mestre-concertista, esteve várias vezes em Paris entre 1759 e 1773. Ali tomou parte como violinista nos concertos espirituais, eventos já então de longa data e que, entre 1725 e 1791, eram dedicados ao cultivo da música - também da instrumental, não propriamente sacro-musical - em atmosfera que fomentava a espiritualidade.
Em Paris, Toeschi publicou composições em casas editoriais de renome, entre elas várias sinfonias. Retornando à Alemanha, passou a atuar sob as novas condições políticas e administrativas relacionadas com o fato do Príncipe Carl Theodor do Palatinado ter-se tornado Príncipe Eleitor da Baviera em 1777. A partir de 1778, Toeschi foi encarregado da música de câmara em Munique.
Os desenvolvimentos da vida musical nas suas inserções em contextos nos seus diversos aspectos do século XVIII tiveram consequências amplas e a sua consideração surge como pressuposto para estudos de desenvolvimentos posteriores em relações globais. A música na Corte-Residência de Mannheim entre ca. 1740 e ca. 1780 tem sido assim tratada com particular atenção na musicologia, uma vez que também foi de importância para os estudos referentes a Mozart, que ali esteve quatro vezes, tomando conhecimento da alta qualidade e precisão da orquestra, de de seus instrumentistas e compositores. Em 1777, ali realizou vários concertos na Côrte e atuou como mentor de príncipes. A orquestra de Corte de Mannheim foi de significado para o desenvolvimento da linguagem musical e da prática sinfônica, assim como para a promoção da virtuosidade instrumental e da composição.
A presença da obra de Carl Joseph Toeschi - assim como de Stamitz - na vida musical de cidades de São Paulo à época colonial surge como de extraordinária relevância sob diferentes aspectos, tanto sob a perspectiva européia como brasileira. Ela dá testemunho das dimensões globais da difusão de obras da segunda geração de músicos da Corte do Palatinado e das práticas e correntes ali desenvolvidas. Ela comprova a recepção de composições e tendências estéticas e técnicas, sobretudo da música instrumental e sinfônica do assim-chamado pré-classicismo no Brasil das últimas décadas do século XIII e início do XIX. Ela indica surpreendente conhecimento de desenvolvimentos contemporâneos nos grandes centros europeus nas colonias e territórios portugueses.
A recepção dessas obras pressupõe a existência de condições adequadas para a sua aquisição, aceitação e cultivo. O estudo dessas pré-condições, por sua vez, abrem caminho para a consideração de desenvolvimentos precedentes e daqueles que desencadearam. Assim como na Europa, o desenvolvimento da pratica instrumental, sobretudo aquela de cordas, em particular violinista, não pode ser compreendida também no Brasil sem a consideração do seu significado no passado nas suas respectivas contextualizações. O seu aperfeiçoamento à época de Mannheim foi por sua vez de significado para o desenvolvimento da prática sinfônica, da música instrumental, tanto na esfera religiosa como na secular, preparando o desenvolvimento extraordinário da música orquestral no século XIX. Como a atuação de músicos de Mannheim nos concerts spirituels em Paris dão testemunho, a prática da música instrumental não deixou de ter dimensões espirituais mais abrangentes. Correspondeu a uma valorização dos instrumentos e da música instrumental na música sacra a partir do reconhecimento de seus efeitos nas missões jesuíticas, o que teve a sua expressão na encíclica Annus qui de Bento XIV (1675-1758). Consequentemente, o descobrimento dessas obras de compositores de Mannheim no vale do Paraíba levaram e exigiram a consideração dessa encíclica no projeto musicológico desenvolvido na Europa.
A permanência dessas obras em repertórios no século XIX revela continuidades na dinâmica dos desenvolvimentos e inovações. Essas permanências não podem ser consideradas apenas superficialmente no sentido de manutenção de obras do passado. Elas dizem respeito a concepções e estados mentais e psíquicos, a situações e contextos em que se inseriram.
Nos colóquios, considerou-se, da perspectiva do Brasil. que as duas vertentes - a da Boêmia e a da Itália - na formação e na irradiação da Escola de Mannheim no Brasil não poderiam deixar de ser consideradas. Elas dirigem a atenção a contextos geográfico-culturais e da história eclesiástica e missionária da Boêmia, do sul da Alemanha, da Baviera e do atual norte da Itália que foram marcados por processos de re-catolização e que marcaram profundamente a vida cultura, a arquitetura, a música e as artes..
O vulto central que explica o florescimento de Mannheim em meados do século XVIII é o de Karl Philipp Theodor, conde e príncipe eleitor desde 1742, mas que também era duque de Jülich-Berg, ducados em região mais ao norte do Reno, cuja principal cidade é Düsseldorf. A partir de 1777 tornou-se príncipe eleitor da Baviera com o título de Karl II.
A atenção dirige-se ao espírito do Esclarecimento que marcou em princípio o seu governo, marcado por reformas, inovações e fomento da filosofia e das artes. Karl Philipp Theodor tornou-se conhecido pelo seu interesse intelectual, pela sua cultura, gosto pelas artes, pelo fomento que concedeu às ciências e pela sua tolerância. Bastaria lembrar que, em 1753, recebeu magnanimamente Voltaire (1694-1778), perseguido em outras regiões. Em 1763, fundou a Academia das Ciências de Mannheim para estudos da História e das Ciências Naturais e, em Düsseldorf, um colégio de Anatomia e Cirurgia. Fundou em 1780 a sociedade de Meteorologia palatina.
Os desenvolvimentos da vida musical nas suas inserções em contextos nos seus diversos aspectos do século XVIII tiveram consequências amplas e a sua consideração surge como pressuposto para estudos de desenvolvimentos posteriores em relações globais.
O século XIX foi principal foco de atenções dos estudos desenvolvidos e que tiveram continuidade em âmbito internacional. A análise de desenvolvimentos do século que foi o da Independência do Brasil exige a consideração de seus pressupostos, de processos já em andamento no qual se inseriam. Esses não foram abruptamente interrompidos e superados, dando lugar a uma nova fase, como apresentado em periodizações esquemáticas. Obras, expressões e práticas que passavam a pertencer ao passado mantiveram-se em repertórios, em complexas interações entre tradição e inovação. Tradicionais em determinados contextos, foram muitas vezes transmitidas anonimamente, sem indicação de autor ou data de composição. Apenas a análise, a ser conduzida necessariamente em dimensões globais, pode contribuir a um reconhecimento de situações epocais e contextuais.
A existência de obras com a indicação de compositores que foram difundidas e cultivadas no Brasil representa um importante subsídio a essas análises e ao estudo de desenvolvimentos estilísticos e de prática musical. Por outro lado, continuidades, ainda que submersas sob novos desenvolvimentos, não podem ser considerada como residuais, permanências de um passado superado. Tendo sido expressões de contextos e processos, possuem uma potencialidade revitalizadora, co-determinando desenvolvimentos.
Um dos objetos dessas reflexões críticas foi o de concepções historiográficas que se exprimem em termos de antes e depois, como no caso de distinções entre o Pré-Clássico e o Pós-Clássico. Essas pensamento em compartimentos ou „gavetas“ implicava na situação paradoxal de ter-se de admitir em determinados contextos uma passagem do Pré-Clássico ao Pós-Clássico sem haver propriamente o que se poderia considerar de Clássico.
Em 1976, os estudos contextuais realizados em Mannheim tiveram sequência em Kassel por ocasião dos Dias da Música (Kasseler Musiktage) que ali se realizavam e que foram então marcados por debates sobre a necessidade de estudos mais diferenciados do século XIX.
A presença de obras da Escola de Mannheim no Brasil foi estudada em várias outras ocasiões. Foi discutida em colóquio de professores e doutorandos em Colonia e em defesa de tese de doutoramento em 1979. Dirigiram a atenção ao significado do estudo da recepção musical no Brasil, tema condutor do Simpósio Internacional Música Sacra e Cultura Brasileira em 1981, no âmbito do qual se fundou a Sociedade Brasileira de Musicologia, eventos que foram motivados, fundamentados e possibilitados pelos trabalhos anteriormente desenvolvidos.
A obra de Toeschi foi estudada em várias outras ocasiões, lembradas em colóquios e simpósios. Foi tratada com o musicólogos que se destacaram na pesquisa do século XVIII. A sua presença no vale do Paraíba foi lembrada em fóruns internacionais como o Fórum austríaco-alemão de 1984, em publicações pelo Ano Europeu da Música em 1985.
Desde a fundação do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS) nesse ano, renovando em âmbito internacional o Centro de Pesquisas em Musicologia, os estudos ampliaram-se a outras regiões marcadas pelos portugueses. Os estudos foram considerados em encontros do projeto Music in Life of Man do ICM e forneceram subsídios para reflexões sobre processos de transplantação da Europa á America Latina, tema discutido em encontro regional paralelo ao I Congresso Brasileiro de Musicologia em 1987. Toeschi e as suas obras foram consideradas em sessão do curso o Clássifo e o Romântico realizado na aula magna dfa Universidade de Bonn em 2004.
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
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