BRASIL-EUROPA
REFERENCIAL DE ANÁLISES CULTURAIS DE CONDUÇÃO MUSICOLÓGICA
EM CONTEXTOS, CONEXÕES, RELAÇÕES E PROCESSOS GLOBAIS
Antonio Alexandre Bispo
Veríssimo Augusto Gloria, policial, músico militar de modestas origens sociais, regente e compositor de música de banda, sacra, instrutor de grande número de instrumentistas, desempenhou um papel de liderança na vida musical em meios sócio-culturais menos privilegiados e em festas populares de São Paulo, na capital e cidades do interior de fins do século XIX até fins da década de 1940.
Esquecido na literatura, na vida musical de concertos e em cursos de história da música, Veríssimo Glória passou a ser objeto de considerações e estudos em meados da década de 1960. A recordação de seu nome e de suas atuações adquire significado para estudos musicológicos orientados segundo processos culturais, assim como para estudos culturais conduzidos a partir da música. Veríssimo Glória desempenhou papel relevante no desenvolvimento desses estudos no Brasil e, a partir de 1975, em âmbito internacional.
Veríssimo Glória, embora tocando vários instrumentos, foi renomado sobretudo como exímio clarinetista. Foi formado na prática de música de banda e na tradição sacro-musical coro-orquestral de igrejas de irmandades. Pertenceu à banda da Guarda Civil, da banda da Força Pública, orgulhoso de sua posição, mantendo-se sempre próximo à música marcial e à vida militar, trajando uniformes, insígnias e apresentando-se com espada em ocasiões festivas. A consciência de ser policial expressava-se no seu comportamento, na autoridade que irradiava e nas suas posições e convicções.
Veríssimo Glória foi membro da Confraria da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, irmandade tradicionalmente relacionada com meios policiais e militares. Tinha sido no passado situada nas proximidades da cadeia e do largo da forca. Sucedeu nas suas função entre outros a José Pinto de Carvalho, também militar, mestre e instrutor de instrumentos marciais, além de professor do Seminário Episcopal.
Veríssimo Glória, pelas características de sua personalidade e aptidões musicais, foi durante décadas reconhecido como autoridade por músicos em meios populares da capital e do interior. Conservador nas suas opiniões políticas e religiosas, severo quanto a normas morais e de comportamento, destacava-se pela disciplina que exigia de seus músicos. Mantinha reserva perante novas expressões da música popular, em particular do jazz,
Foi católico convicto e obediente à autoridade eclesiástica e à legislação sacro-musical. Embora inserido na tradição sacro-musical da música coro-orquestral, procurou seguir a orientação do Motu Proprio de 1903. Adquiriu, estudou e empregou o Graduale romanum de 1908. Vivenciou e foi marcado pelas mudanças de repertórios e práticas decorrentes do movimento restaurador litúrgico-musical do século XIX que se prolongou no século XX.
Veríssimo Glória escreveu várias obras sacro-musicais, missas, hinos eucarísticos, novenas, ladainhas, e, na esfera secular, marchas, dobrados, galopes, polcas, schottisches, mazurcas, maxixes e outras danças estilizadas. Marcou com as suas composições coro-orquestrais o repertório de igrejas de São Paulo e do Interior.
Entre as suas composições mais difundidas pode-se mencionar o hino eucarístico O Salutaris Hostia para canto, dois violinos e baixo. A sua Ladainha de Nossa Senhora para coro e solo, dois violinos, baixo, clarineta e trompa, composta em 1906, era entoada tradicionalmente na Igreja dos Remédios em São Paulo. Da sua obra pode-se também salientar um Libera me para missa de defuntos. Das suas missas, cumpre lembrar um Sanctus/Benedictus e Agnus Dei para coro, dois violinos, clarineta, trombone e pistom compostos em Jundiaí, em 1906. Esta obra servia para completar missas constituídas apenas por Kyrie e Gloria, uma prática bastante difundida.
O seu nome e as suas atuações eram ainda lembrados na década de 1960 por músicos e cantores de irmandades e de corporações musicais, alguns dos quais exerciam atividades de ensino em conservatórios. Essas redes de contatos profissionais e pessoais de músicos e professores trouxeram à consciência o papel que Veríssimo Gloria desempenhara à frente de sua banda em festas religiosas, na música sacra de irmandades tradicionais e em romarias e festas, entre elas aquelas do Bom Jesus em Pirapora.
O convívio com os seus familiares, os seus instrumentos, uniformes, armas policiais, documentos vários e sobretudo o seu grande acervo de partituras revelaram uma esfera da vida musical, religiosa e sócio-cultural da cidade por assim dizer submersa, esquecida de historiadores, intelectuais e artistas considerados como representantes de uma esfera erudita da cultura e da música.
O descobrimento desse universo músico-cultural foi possibilitado pela participação observante na prática musical em solenidades e festividades de irmandades tradicionais, pela pesquisa empírica e ao mesmo tempo pela procura de informações e de fontes. Desde o inicio, os estudos não tiveram apenas objetivos históricos, uma vez que se reconheceu a necessidade de consideração de seus contextos sócio-culturais e dos processos em que se inseriam. A atenção foi desde o início não apenas voltada à história social, mas a estudos de processos culturais a partir da música e reciprocamente a estudos musicológicos de condução cultural.
Verissimo Glória foi um dos músicos paulistas que mais contribuíram para a tomada de consciência de uma necessária renovação de perspectivas nos estudos culturais e musicais que desencadearam o movimento Nova Difusão com o seu Centro de Pesquisas em Musicologia.
Foi não apenas uma personalidade que mereceu atenção no interesse então despertado para uma Sociologia da Música, mas para estudos interdisciplinares que procuravam superar visões e procedimentos marcados por delimitações em compartimentos, por áreas e disciplinas categorizadas como eruditas ou populares, por limites de esferas sociais, étnicas, religiosas e culturais e promover um direcionamento da atenção a processos que supeeram separações e suas interações.
Devia-se superar um modo de pensar e agir que, na História da Música, levava pesquisadores a procurar fontes e valorizar apenas documentos que correspondessem à ambição de descobrimento de grandes obras, em geral de obras do passado colonial. Esse foi o sentido da conceito de Nova Difusão, ou seja, a difusão de uma nova mentalidade e novas atitudes e procedimentos marcados por abertura de mentes, de perspectivas e visões.
Marcos no desenvolvimento dos estudos foram encontros na Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios, estudos da sua antiga igreja em cooperações com historiadores, arquitetos, urbanistas, o que tiveram a sua expressão em sessão realizada no Instituto Musical de São Paulo no âmbito do Festival de Outono de São Paulo da Nova Difusão com o apoio do Departamento Municipal de Cultura em 1970. Em as obras de maior envergadura do século XIX realizadas por Veríssimo Glória em solenidades da confraria dos Remédios encontrava-se Missa de Gloria do compositor italiano Luigi Canepa (1849-1914) em partitura manuscrita do próprio compositor.
Essa irmandade, assim como igrejas e pontos de encontros de músicos frequentados por Veríssimo Gloria foram objeto de considerações no curso Música na Evolução Urbana de São Paulo e de História da Música na Faculdade de Música e Educação Musical do Instituto Musical de São Paulo. Descendentes de Veríssimo Glória participaram em concertos do Coro e Orquestra de Música Sacra Paulista fundado na Faculdade do Instituto Musical de São Paulo em 1972.
Veríssimo Glória foi um devoto de Bom Jesus de Pirapora e assíduo participante à frente de sua banda em romarias e festas de Pirapora. Nessas ocasiões, apresentava-se em procissões e retretas. Mantinha contatos com músicos e religiosos do Seminário Menor Diocesao, salientando-se José Correa da Silva, cognominado Juca Bolinho. As romarias e festividades de Pirapora possibilitavam encontros com músicos provenientes de várias cidades, intensificando relações. Entre eles, salientava-se Benedito de Moraes, nascido em Araçariguama, ativo em muitos cidades do interior e posteriormente morador em São Roque.
Verissimo Glória foi objeto de atenção internacional no âmbito do projeto brasileiro de desenvolvimento de estudos culturais e musicológicos dirigidos a processos em contextos globais na Alemanha a partir de 1975. O seu significado sob essa orientação histórico-social e culturológica, já reconhecido no Brasil, foi o principal fator do interesse despertado pelo músico. Ele vinha a encontro de tendências então atuais de desenvolvimentos de estudos que relacionavam a Etnomusicologia e a História da Música.
Em projeto sobre as culturas musicais da América Latina no século XIX então em desenvolvimento, considerou-se a necessidade de estudos históricos na Etnomusicologia, então compreendida de forma abrangente como pesquisa musicológica em países extra-europeus. Concomitantemente, salientou-se a necessidade de consideração de resultados da pesquisa empírica nos estudos históricos latino-americanos.
Nos diálogos, refletiu-se sob conceitos e aspectos étnicos, considerando-se, ao lado de compositores de origens européias, tradições, práticas musicais e nomes de compositores de origem africana ou provenientes de uniões nas suas diversas formas. Lembrou-se nessas reflexões do fato já reconhecido nos estudos brasileiros de que Verissimo Glória, apesar de toda a proximidade relativamente às condições sociais, devia ser considerado sob o aspecto étnico de forma diferenciada quanto a músicos da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos de São Paulo. Essa diferenciação levantava a problemática do termo "Barroco Mulato" empregado de forma generalizada. O termo "mulato" e concepções questionáveis de mulatismo não surgiam como adequados.
A sua Ladainha de 1906 permite reconhecer características que explicam a sua popularidade entre os cantores e fiéis. O tratamento musical do texto, marcado por curtos valores e figuras intercalados de pausas, revela um cunho popular, ritmado, sem maiores expansões melódicas, diferenciando-se nesta reserva de ladainhas de outros compositores.
Considerada nos estudos de ladainhas desenvolvidos sob o aspecto histórico-musical e etnomusicológico a partir de fontes de outros contextos e regiões do Brasil, essa ladainha de Verissimo Glória foi tratada no âmbito de projeto de ladainhas que tiveram a sua expressão em texto publicado em 1983.
Este texto é extraido da publicação
Antonio Alexandre Bispo. Pedro II 200 Anos. Música em estudos euro-brasileiros do século XIX. Gummersbach: Akademie Brasil-Europa & Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.
416 páginas. Ilustrações. (Série Anais Brasil-Europa de Ciências Culturais)
Impressão e distribuição: tredition. Ahrensberg, 225.
ISBN 978-3-384-68111-9
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